Quaresma, Decifrador - As Novelas Policiárias
“"O que temos, portanto, são fragmentos, o que não é propriamente novidade em Pessoa. Umas vezes temos o crime e não temos a solução, outras vezes temos a solução e não temos o crime, outras vezes temos apenas o raciocínio de Quaresma, que é sempre muito caprichado por Pessoa, outras o contexto, por vezes capítulos desgarrados, etc. Se em algumas novelas há pelo menos um núcleo que é reconstituível como narrativa, outras há em que o carácter fragmentário não deixa entrever o texto como ele deveria acabar por ser", indicou.
A segunda dificuldade com que se deparou foi que "o enredo da maior parte das novelas que o têm é razoavelmente simples, mesmo cândido, e um pouco datado".
"São novelas - classificou - de uma sociedade pacata, provinciana, cândida e de uma polícia primitiva, muito longe da sofisticação actual. Isso não retira qualquer interesse à novela, que segue algumas das regras da `detective story` da Idade de Ouro do policial inglês que Pessoa muito admira, sendo aliás membro do Albatross Book Club e lendo todo o género de policiais".
"Em termos de adaptação e de argumento, portanto, temos primeiro um défice de enredo (que muitas vezes se reduz ao enigma), depois um défice de acção propriamente dita e por fim uma grande economia de personagens - Quaresma, o Chefe Manuel Guedes, da Investigação Criminal, mais conhecido por `Guedes Bruto`, a vítima, que não conta muito, porque em princípio está morta, e um par de suspeitos -- o que, em termos de orçamento, é bom", observou, provocando o riso na audiência.
Para Luísa Costa Gomes, o grande interesse da série "Quaresma, Decifrador" "é o Abílio Fernandes Quaresma propriamente dito", embora não tenha "nada, à partida, de motivador, nem de simpático, como personagem".
"É - descreveu - um homem humilde, envelhecido, magro, doente, alcoólico, fumador inveterado, leitor de charadas e enigmas do `Almanach de Lembranças`. Vive modestamente na Rua dos Fanqueiros, com uma manta pelos ombros, numa desarrumação de livros e almanaques. Não tem propriamente vida social, excepto quando o Chefe Guedes, o Sancho Pança deste Quixote apagado e cinzento, lhe aparece com o dom de um mistério".
"Mas -- sublinhou - dizer que é o Sherlock Holmes da Rua dos Fanqueiros é errar o ponto e a dimensão do personagem. Há qualquer coisa de essencialmente lisboeta no Quaresma que o subtrai a esse tipo de comparações. É, como Pessoa, um asceta e um bibliómano. Como Pessoa, um intelectual isolado na cafraria cultural portuguesa. Um cérebro gigantesco aprisionado numa circunstância menor".”
Eis um longo texto retirado do site da RTP. Trata-se de notícia recente – Novembro do ano que passou – e são declarações de Luisa Costa Gomes, uma das figuras mais interessantes e consistentes da nossa “vida cultural” do torna-século. Vai ela adaptar as/estas “novelas policiárias” de Fernando Pessoa para a RTP, 13 episódios. Admiro-lhe a coragem, pelas dificuldades acima enunciadas, e porque a televisão portuguesa é mestre em afogar qualquer tentativa de fazer um audiovisual de qualidade sobre o que quer que seja. A esparrela está à vista, oxalá eu me engane. Quando os grande êxitos de produção da RTP são o “Conta-me Como Foi” – remake sem grande desvio do produto espanhol – e o “Liberdade XXI” – cuja vertigem dos movimentos da câmara me provoca cefaleias ao fim de trinta segundos.
Bom, e o “Quaresma, Decifrador”? Edição mais uma da Assírio & Alvim, é um conjunto de relatos na linha do policial inglês do virar dos séculos XIX-XX onde Pessoa aproveita, através da mais uma invenção de um personagem curioso e genial, para se alargar nas suas considerações sobre o raciocínio, os sentimentos, a loucura, as pulsões, etc., em páginas de desigual qualidade mas que aqui e ali se lêem bem. De vez em quando aparecem também alguns bons diálogos e algumas boas situações criadas. Saltitando é um volume que vale a pena e também pelos lampejos do génio que vão aparecendo. Deixo exemplos:
“”O génio, o louco e o criminoso são três casos de inadaptação. No génio a inadaptação é intelectual: é um homem que não pensa, nem pode pensar como os outros. No louco a inadaptação é emotiva: é um homem que não sente, nem pode sentir, como os outros. No criminoso a inadaptação é da vontade: é um homem que não quer, nem pode querer, como os outros.””
in O Caso Vargas
“-Porquê, doutor? perguntou o Guedes.
-Porquê, o quê? interrogou o dr. Quaresma.
-Porque é que, quanto mais estranho é um facto, menor é o número de hipóteses para o explicar?
-Porque o estranho é o invulgar, e há evidentemente menos causas para o invulgar do que para o vulgar. Se amanhã aparecer morto numa rua de Lisboa um homem que assassinaram com uma facada, você, só pela facada (não me refiro agora à identidade do homem e das conclusões que se possam tirar dela) não poderá concluir muito quanto à natureza do criminoso. Se esse homem tiver sido morto por uma punhalada de um punhal delgado, restringe-se forçosamente o número de criminosos possíveis. Se tiver sido morto por uma seta, poderá haver dificuldade material em acertar com o criminoso, mas haverá facilidade em desde logo eliminar um grande número de criminosos. Você compreende, não é verdade?”
in A Carta Mágica
“-Dizia-me um coisa, faz favor, disse Quaresma. Era o sr. que estava de serviço naquela noute em que houve um crime ali defronte.
-Era, sim senhor, respondeu o polícia, parando.
-Eu fui consultado sobre o crime por um amigo meu da polícia de investigação. Sou médico, mas dedico-me a decifrar charadas, e isto é uma charada. Vim aqui, e ia fazer uma pergunta a uma pessoa ali do prédio fronteiro – e indicou-o – mas acho melhor não fazer a pergunta, para não levantar nenhuma espécie de suspeitas. Por isso queria, antes de mais nada, perguntar-lhe a si umas cousas…
-Se eu souber, sr. doutor…
-Vamos andando, disse Quaresma. E os dois seguiram, no passo do guarda, pela avenida acima.
-Eu ouvi a narrativa dos pormenores do crime, com todos os detalhes. Ouvi, e resolvi o problema logo, porque é extremamente simples. O que eu lhe queria perguntar era isto, e indicou com um dedo o lugar já passado da casa do Branco, “Quem é que ele seduziu – foi sua irmã, sua namorada, ou que é que foi?”
Andaram automaticamente quatro passos sem falar. Ao quinto passo, o polícia respondeu numa voz firme e incolor:
-Foi minha irmã.
Andaram mais dois passos.
-E foi por isso que o matou? perguntou Quaresma.
(…)
-Deduzi bem?
-Perfeitamente, sr. dr. E o que é V.ª Ex.ª tenciona fazer?
-Tomar o carro para a Baixa no lugar mais próximo. É a única coisa que tenho a fazer.
- Agradeço a V.ª Ex.ª. Não tenho medo nem da morte nem de nada, mas queria viver, e viver livre, se pudesse ser. Não podendo…
-Cá por mim não há dúvidas, respondeu Quaresma. Resolvi o problema, estou satisfeito. Está tudo acabado. Mas onde é que se apanham aqui carros para a Baixa? Estou um bocado cansado.”
in A Morte de D.João
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