Mundos de Fronteira
Ilse Pollack, austríaca, escreveu já há uns bons anos uma série de ensaios sobre alguns escritores da Europa Central, uns muito conhecidos – ex. Kafka – outros nem por isso. São estes textos, reunidos sob o nome de "Mundos de Fronteira" que nos aparecem em edição da Cotovia. Pollack já viveu e ensinou em Portugal, até já escreveu sobre nós, curiosamente agora escreve mais sobre literatura africana de expressão portuguesa, se calhar uma boa escolha.
Voltando aos textos em questão, todos estes escritores têm em comum terem vivido na área gheográfica do defunto Império Austro-Húngaro e terem migrado entre nacionalidades, povos e línguas. Servem estas reflexões para rever/moderar o mito do Império multicultural, servem para mostrar por ex. o quanto a intelectualidade judaica leste e centroeuropeia olhava para o alemão como o mar para onde deviam desaguar todos os rios – foram quase todos gaseados anos depois… etc., etc. Ensaios com uma profunda melancolia subjacente e um olhar duro sobre as cidades – Praga, Viena, Trieste – onde esta esquizofrenia melhor se exprimiu - ou o difícil e segregado convívio dos povos nos campos e na província.
Vejamos os seguintes extratos:
Sobre Kafka:
"(...) Os livros de Kafka foram - e continuam a ser - lidos como profecias. E no entanto não há neles nada de profético. Se partirmos do princípio de que as experiências dos seus protagonistas são pura e simplesmente descrições da sua própria existência, temos logo de salientar que essa existência foi a de um judeu. É verdade que a palavra "judeu" nunca aparece nos livros de Kafka - e no entanto o destino judaico, de forma ao mesmo tempo muito sintomática, tem um significado decisivo na sua obra. (...)"
Sobre Milo Dor (escritor austríaco de ascendência sérvia, nascido em Budapest):
"(...) e os cafés, "lugares de uma comunicação intelectual", cujos proprietários, quase todos judeus, desapareceram para sempre, dizimados nos campos de concentração do Terceiro Reich. E como foram os judeus que assumiram esse papel mediador entre o centro e a periferia, sem o qual não haveria cultura da Mitteleuropa, toda e qualquer tentativa de ressuscitar esse conceito no final do nosso século só pode ser, segundo Dor, connversa fiada. E o mesmo se passa com o segundo pressuposto, o do "uso da língua alemã como meio de comunicação geralmente reconhecido" nos chamados "países que se formaram depois" (Nachtfolgeländer), coisa que não existe. "Quando (hoje) um jovem checo se quer entender com um húngaro ou um esloveno, fá-lo em inglês.""
"Num dos seus mais belos textoa autobiográficos, (...) Milo Dor diagnostica: "Dependendo dos factos do passado dos meus avós que eu escolha como estrelas fixas para minha orientação, tanto posso ser um sérvio às direitas como um austríaco às direitas. Mas não sou nem uma coisa nem outra. É essa a minha doença." (...) "Para mim, as fronteiras são matéria gelatinosa. Não sei o que fazer com os povos (...). Só gosto de indivíduos que duvidam, que tentam pensar. Quando os deixam pensar. Só amo sem reservas os povos extintos"."
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