Jerusalém
O facto de ter feito a piadinha da praxe sobre o escritor-de-quem-se-fala, Gonçalo M. Tavares, em texto pretérito que cursava sobre Vila-Matas obrigou-me, de alguma forma, a ler o mesmo. Já o tinha feito – comprei um livro seu de poesia, chamado sintomaticamente “Um”. Enfim, maus poetas podem ser grandes prosadores, pensei.
E agora vamos a “Jerusalém”. Livro de 2004, inserido numa série de “Livros Negros” do autor. Não vou reincidir comentando a prolixidade deste homem, que publica como que meia dúzia de títulos ao ano.
E o livro até começa mais ou menos bem. Os personagens circulam entre uma cidade – qualquer – e um hospício. Há loucos, guardiães de loucos, médicos (assumimos que psiquiatras), e outros figurantes – uma prostituta, por ex. Uma circulação de encontros e desencontros, crueldades e desesperos vai sendo desenhada ao longo de pequenos capítulos intitulados segundo o nome dos figurantes.
O livro termina como começou, uma mulher, talvez-não-tão-louca, tenta entrar numa igreja. Será esta a razão do título, ou então a citação bíblica: “Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita”. Para que (talvez...) a porta lhe seja aberta, ela terá que matar por interposta pessoa.
A estreiteza dos capítulos não é o único artifício de que este livro se socorre. Já referi a secura do discurso. Acontece que este mesmo discurso é pontuado por uns quantos itálicos para facilitar a compreensão da coisa. Que não é até nada difícil, pese embora os saltos temporais que vão acontecendo. O germânico dos nomes é outro estratagema, mais um intermezzo de pequenos textos chamados “Europa 02”, reminiscências de torturas a la mitteleuropa, geografia de textos a rimar com os nomes, et voilà.
Diz o autor: “Considero que estes três romances, «Um Homem: Klaus Klump», «A Máquina de Joseph Walser», [os dois “livros negros” anteriores...] e agora o «Jerusalém» são livros emocionais e portanto que incluem o leitor no seu mundo. Não há nada de abstracto em «Jerusalém», a violência entre pessoas e os laços amorosos e familiares existem em todo o lado. Estamos todos no mesmo barco: temos medo e se necessário somos agressivos.” E também: “A prostituta, o médico, quase todas as personagens são como nós. A mesma extraordinária porcaria saudável.”, ou que: “...não há nenhum lugar estrangeiro ao medo, à agressividade, à loucura, à ligação entre pais e filhos. Pertencemos todos ao mesmo país.” Percebe-se que portanto este livro pretende retratar-nos. Se o referente é germânico, podemos assumir existir como que uma espécie de expressionismo neste retrato. O problema é eu não me sentir retratado. Este expressionismo minimalista, pelo decoro do discurso, é afinal o escrever habitual deste escritor, sendo que por outros folheares se expressa assim "todos os dias" (por escrito) há muitos anos. A ideia é ficarmos impressionados. Eu digo: a ideia seria ficarmos encantados. Não foi o caso. Vejamos:
“ Janika é negra e gosta de fazer comida.
Gosto de fazer comida, diz Janika.
Mete tudo o que encontra para uma panela. Pedras, ervas, beatas de cigarro, pequenos papéis.
Não se pode desperdiçar, diz.
Janika tem cinquenta anos.
Passei fome, diz Janika, não se pode desperdiçar.
Alguns homens atiram os cigarros e as beatas directamente para o tacho que Janika leva.
Passei fome, gosto de fazer comida, diz Janika.”
Ok. E também...
“Mylia regressou, passado uma semana, para aquela que seria a sua primeira operação. Depois dessa seguiram-se outras três, ao longo de vários anos. Até que a certa altura o médico, após a análise do desenvolvimento da doença, lhe comunicou que nada havia a fazer: no máximo ela viveria dois anos. Mais do que isto seria um milagre. Nas suas palavras, seria um acontecimento espiritual e não terapêutico.
Mylia de imediato recordou as teorias de Theodor Busbeck, o ex-marido. Reconheceu-as na boca desse médico: o espírito, a procura de Deus. Aterceira parte da saúde. Quando a matéria falha.”
O pathos não passa, o reconhecimento não acontece, o transporte até onde as coisas são não há. A referência kafkiana é óbvia mas é pobre e precisa destas mais-valias dos nomes germânicos, da loucura-a-cada-esquina, etc., para ir sobrevivendo.
“O papel das mulheres e dos homens era evidente na família Busbeck: os homens conseguem uma coisa e as mulheres mantêm-na. Eram como que duas partes do mesmo exército: os homens iam à frente e ganhavam notoriedade e às mulheres estava entergue a função, extremamente difícil e delicada, de manter o alto nível das conquistas, ou seja: a cargo delas estava a manutenção da higiene da notoriedade, expressão que ganhara na família Busbeck uma consistência orgulhosa. Nenhuma mulher da família se envergonharia de dizer em voz alta: eu mantenho limpa a notoriedade do meu marido. Pelo contrário, tal frase - a ser verdadeira - expressaria, muito simplesmente, o sucesso de uma existência."
Ah, e...? E é assim por todo o livro. O livro "é negro" e tem uma capa... negra. Oh, brother!
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