Estrela Errante
"Esther desceu e aproximou-se, tentando compreender. As mulheres desviavam-se e algumas gritavam-lhe palavras duras na sua língua. De repente, destacou-se do grupo uma rapariguinha muito jovem. Dirigiu-se a Esther. Tinha o rosto pálido e fatigado, o vestido cheio de pó e um grande lenço no cabelo. Esther viu que as tiras das suas sandálias estavam rebentadas. A pequena aproximou-se dela até lhe tocar. Os seus olhos brilhavam com uma luz estranha, mas não falava, não pedia nada. Durante um longo tempo permaneceu imóvel, com a mão poisada no braço de Esther, como se fosse dizer qualquer coisa. Depois, tirou do bolso do casaco um caderno em branco com capa de cartão preto e na primeira página, ao cimo, à direita, escreveu assim o seu nome, em letras maiúsculas: N E J M A. Estendeu o caderno e o lápis a Esther para que ela escrevesse também o seu. Ficou ainda um momento, com o caderno preto apertado ao peito como se fosse a coisa mais importante do mundo. Por fim, sem pronunciar uma palavra, voltou para o grupo de refugiados que se afastava. Esther deu um passo na sua direcção para a chamar, para a reter, mas era tarde demais. Teve que tornar a subir para o camião. O comboio retomou a marcha, no meio de uma nuvem de poeira. Mas Esther não conseguia afastar da lembrança o rosto de Nejma, o seu olhar, a sua mão poisada no braço, a lentidão solene dos gestos com que lhe estendera o caderno onde tinha escrito o seu nome. Não conseguia esquecer os rostos das mulheres, os olhares desviados, o medo nos olhos das crianças, nem aquele silêncio que pesava sobre a terra, na sombra dos barrancos, em redor da fonte. "Para onde vão?" Fez a pergunta a Elizabeth. A mulher que tinha afastado o encerado fitou-a sem dizer nada. "Para onde vão?" repetiu Esther. A mulher encolheu os ombros, talvez por não compreender. Foi outra mulher, vestida de preto, de rosto muito pálido, que respondeu: "Para o Iraque." Disse aquilo com dureza e Esther não se atreveu a perguntar mais nada. A estrada estava esburacada pela guerra e a poeira formava uma poalha amarelada sob o encerado do camião. Elizabeth mantinha a mão de Esther apertada na sua, como antes, no cminho de Festiona. A mulher disse ainda, olhando para Esther como se tentasse ler-lhe os pensamentos: "Não há inocentes. São as mães e as mulheres dos que nos matam." Esther retorquiu: "Mas as crianças?" Os olhos dilatados pelo medo permaneciam na sua memória e sabia que nada poderia apagar o olhar delas"
Este romance do Prémio Nobel de 2008 J.M.G. Le Clézio conta a história da judia Esther, jovem fugida de França para Itália e depois para a Israel, recém-criado. E de Nejma, jovem Palestina refugiada pela guerra de independência do mesmo Israel. O texto acima expõe amplamente os perigos a que se expõe o autor, dado o tema. C'est une reussite brillante, sans aucunne dûte. Com isto quero eu dizer que é um romance fantástico, e que se lê de um fôlego. Entretanto, sessenta anos passaram...
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