A Música das Esferas
Não sei o que se passou com a Clara Pinto Correia e admito que nunca virei a saber nem terei direito a tal sabedoria mas eu sei, de fonte segura e fiável que é o eu ter estado lá, que ela já escreveu muito bem, desesperadamente bem, cumprindo aquela profecia de precocemente dotada que por aí circulava.
E como prova vem então esta colecção de três pequenas coisas que juntas agora – agora sendo no ano 1995, portanto pouco depois – se constituem no livro “A Música das Esferas”, das ed. Relógio de Água. Antes os três textos tinham sido editados na Rolim e não pela ordem que neste livro estão: “Um Esquema” em 1985, “Campos de Morangos Para Sempre”, 1987 e “O Príncipe Imperfeito” em 1988.
Vou passar de largo o prefácio de CPC: não serve para nada e exemplifica alguma da escrita circular e portanto pouco interessante que a tem distinguido nos últimos anos. As referências científicas, temo, só agravam a coisa. Decido portanto passar aos textos, um a um.
Terão perguntado a CPC se algo em “Um Esquema” era autobiográfico. Pois. De que trata? De um esquema. Algo que acontece entre duas pessoas, até conhecidas já antes mas que sucede um dia tropeçarem muito uma na outra. E retropeçam durante um tempo, até ao natural fim. Enquanto isso namoram, circulam entre amigos e trabalho e a lenta velocidade do tempo que a todos une. O relato é feito adoptando a perspectiva dos próprios, de vários intervenientes, testemunhas, cúmplices, assessores.
Começa:
“Foi assim, pronto. Comecei a gostar muito dele, e daquele cheiro de água de colónia para bebé que lhe anunciava a proximidade. É evidente que nunca duvidei de que ia retirar daquilo alegrias apreciáveis. (...)”
E termina primeiro com uma carta de despedida nunca expedida, como já houve muitas, as palavras estão mesmo lá:
“(...) se queres saber o que apetece realmente (não deves querer, mas paciência), então digo-te já que me apetece chorar, insultar-te imenso, telefonar-te a fazer uma cena enorme, perguntar-te porquê, porquê. (...)”
“(...) As pessoas, sabes, não devem deixar-se penduradas, como casacos velhos num bengaleiro. Fizeste-me sentir uma presença absorvente, incómoda, vergonhosamente voraz perante a tua falta de desejo. Foi muito mau. Podias ter-mo poupado. (...)”
E a seguir a esta não enviada carta o último testemunho, já pretérito, o último raio de luz, "le rayon vert" como diria Julio Verne, a tal luminosidade rara que o encantamento pode transmitir a todas as coisas à sua volta:
“(...)
Íamos e vínhamos, eu e ela, com as travessas, e trazíamos os lagostins com limão por cima, quando ela parou, a falar comigo, encostada à parede. Estava radiosa, como sempre estão os eleitos. Não percebi porque é que ficávamos ali no meio do caminho, até que o vi chegar lá do fundo, afogado em cadeiras, a avançar pelo corredor, até estar mesmo à nossa frente. Então ela passou por mim como se não me visse, mas era só para meu deleite que o fazia. Envolveram-se num olhar abrasador, eu a assistir, e seguiram juntos em direcção à sala, pelo corredor, lado a lado.
Nunca saberei o que houve exactamente entre eles, naqueles meses em que os dias estavam quentes e compridos. Nem sei muito bem se aprovo este tipo de coisas. (...)”
A cara e a coroa do dinheiro com que se compra a vida, eis. Nunca melhor descrito em coisas por mim lidas, acho. Por uma vez o manejo por CPC do vocabulário vulgar não polui antes acrescenta uma sensação de possível pertença nossa a este mundo, algo de parecido já nos terá acontecido e se não, temos pena.
O 2º texto é um libreto para uma ópera com prólogo e um acto e chegou a ser efectivamente representada e cantada por alunos do Conservatório Nacional de Lisboa no ano a seguir à edição do texto, que foi 1988. Uma vez mais o amor anda por aqui, um amor imenso, devastador, transformador dos elementos e das coisas:
“Cantor
(...)
Tu tens um país mas eu dou-te as distâncias
Terás o poder ou a minha ternura
No dia que traz as cegonhas do Sul
Se comigo quiseres partir à aventura.
Joana
Quando atravessámos o rio, pensavas que eu estava de regresso?
Cantor
Pensava.
Joana
Tu não sabes de nada, cantor. Eu não estava de regresso. Estava de partida.”
A qualidade do texto se calhar só poderia ser bem aferida ouvindo o espectáculo que realmente aconteceu, e não sei se haverá dele gravação. Fica a hipótese. Não deixa de ter as suas linhas com boa cozedura, quero eu dizer que é bem legível.
“Campos de Morangos Para Sempre” saiu na Rolim em 1987 e é um livro de crónicas, não sei se previamente aparecidas em algum lado. São textos curtos que funcionam como curtíssimas metragens, ou até instantâneos de momentos mágicos em algum sítio, e apercebemo-nos com CPC que também nós já estivémos lá. A expressão prosa poética foi para aqui inventada. Dizendo-me menos que "O Esquema" é provavelmente melhor. Alguns dos pequenos textos são sublimes:
“As Metralhadoras
Uma das saídas da rotunda leva à ponte, a outra à auto-estrada. Uma perde-se no meio dos eucaliptos e dá pela mata meia dúzia de voltas incertas com muitas encruzilhadas e destinos suburbanos nas pontas. A quarta corta a direito em direcção às bombas de gasolina, à volta estão blocos de chapa e de contraplacado encostados para formarem casas precárias, há muitos buracos, crianças nuas debaixo das camisolas sujas, e para diante regressam os prédios e as pracetas, mais bairros, mais urbanizações, até começarem a saltar couves e galinhas do meio do betão e todas as noções da ordem e da lógica se curvarem numa mesma indistinta turbulência, em lances de quatro ou cinco andares. Além destas há ainda na rotunda outras duas entradas, ms ninguém segue agora por elas porque levam a restaurantes ou a vagas áreas desportivas. Bicho de muitas penas, a rotunda pulsa, detém-se e acelera-se, comprime-se e alarga-se com a regularidade com que golfa o sangue nas artérias. Os automóveis chegam aqui e travam, depois seguem, e entretanto entreolham-se.
(...)”
“Gregoriano
(...)Para lá daquele canavial viveu-se uma vez um grande amor sem que ninguém soubesse, ao fundo daquele carreiro muito estreito veio uma vez um melro e arrancou os olhos aos filhos porque lhos tinham fechado dentro de uma gaiola. As cobras armavam traições aos calcanhares das mulheres, os rapazes deitavam-se de bruços na erva, dizem que os cães se juntam no meio da floresta, onde as árvores se encostam tanto que não deixam a luz chegar até ao chão, e então são ferozes como lobos, temíveis e esfomeados. Há ninhos, colmeias, passos sobre as folhas secas, ms tudo se rende ao nevoeiro que sobe. Ao fim da tarde, só os cumes mais altos ainda não se afogaram na cegueira branca das toalhas de nuvens. Nas aldeias da serra, dentro de cada uma das casas, agora podia acontecer tudo.”
E como prova vem então esta colecção de três pequenas coisas que juntas agora – agora sendo no ano 1995, portanto pouco depois – se constituem no livro “A Música das Esferas”, das ed. Relógio de Água. Antes os três textos tinham sido editados na Rolim e não pela ordem que neste livro estão: “Um Esquema” em 1985, “Campos de Morangos Para Sempre”, 1987 e “O Príncipe Imperfeito” em 1988.
Vou passar de largo o prefácio de CPC: não serve para nada e exemplifica alguma da escrita circular e portanto pouco interessante que a tem distinguido nos últimos anos. As referências científicas, temo, só agravam a coisa. Decido portanto passar aos textos, um a um.
Terão perguntado a CPC se algo em “Um Esquema” era autobiográfico. Pois. De que trata? De um esquema. Algo que acontece entre duas pessoas, até conhecidas já antes mas que sucede um dia tropeçarem muito uma na outra. E retropeçam durante um tempo, até ao natural fim. Enquanto isso namoram, circulam entre amigos e trabalho e a lenta velocidade do tempo que a todos une. O relato é feito adoptando a perspectiva dos próprios, de vários intervenientes, testemunhas, cúmplices, assessores.
Começa:
“Foi assim, pronto. Comecei a gostar muito dele, e daquele cheiro de água de colónia para bebé que lhe anunciava a proximidade. É evidente que nunca duvidei de que ia retirar daquilo alegrias apreciáveis. (...)”
E termina primeiro com uma carta de despedida nunca expedida, como já houve muitas, as palavras estão mesmo lá:
“(...) se queres saber o que apetece realmente (não deves querer, mas paciência), então digo-te já que me apetece chorar, insultar-te imenso, telefonar-te a fazer uma cena enorme, perguntar-te porquê, porquê. (...)”
“(...) As pessoas, sabes, não devem deixar-se penduradas, como casacos velhos num bengaleiro. Fizeste-me sentir uma presença absorvente, incómoda, vergonhosamente voraz perante a tua falta de desejo. Foi muito mau. Podias ter-mo poupado. (...)”
E a seguir a esta não enviada carta o último testemunho, já pretérito, o último raio de luz, "le rayon vert" como diria Julio Verne, a tal luminosidade rara que o encantamento pode transmitir a todas as coisas à sua volta:
“(...)
Íamos e vínhamos, eu e ela, com as travessas, e trazíamos os lagostins com limão por cima, quando ela parou, a falar comigo, encostada à parede. Estava radiosa, como sempre estão os eleitos. Não percebi porque é que ficávamos ali no meio do caminho, até que o vi chegar lá do fundo, afogado em cadeiras, a avançar pelo corredor, até estar mesmo à nossa frente. Então ela passou por mim como se não me visse, mas era só para meu deleite que o fazia. Envolveram-se num olhar abrasador, eu a assistir, e seguiram juntos em direcção à sala, pelo corredor, lado a lado.
Nunca saberei o que houve exactamente entre eles, naqueles meses em que os dias estavam quentes e compridos. Nem sei muito bem se aprovo este tipo de coisas. (...)”
A cara e a coroa do dinheiro com que se compra a vida, eis. Nunca melhor descrito em coisas por mim lidas, acho. Por uma vez o manejo por CPC do vocabulário vulgar não polui antes acrescenta uma sensação de possível pertença nossa a este mundo, algo de parecido já nos terá acontecido e se não, temos pena.
O 2º texto é um libreto para uma ópera com prólogo e um acto e chegou a ser efectivamente representada e cantada por alunos do Conservatório Nacional de Lisboa no ano a seguir à edição do texto, que foi 1988. Uma vez mais o amor anda por aqui, um amor imenso, devastador, transformador dos elementos e das coisas:
“Cantor
(...)
Tu tens um país mas eu dou-te as distâncias
Terás o poder ou a minha ternura
No dia que traz as cegonhas do Sul
Se comigo quiseres partir à aventura.
Joana
Quando atravessámos o rio, pensavas que eu estava de regresso?
Cantor
Pensava.
Joana
Tu não sabes de nada, cantor. Eu não estava de regresso. Estava de partida.”
A qualidade do texto se calhar só poderia ser bem aferida ouvindo o espectáculo que realmente aconteceu, e não sei se haverá dele gravação. Fica a hipótese. Não deixa de ter as suas linhas com boa cozedura, quero eu dizer que é bem legível.
“Campos de Morangos Para Sempre” saiu na Rolim em 1987 e é um livro de crónicas, não sei se previamente aparecidas em algum lado. São textos curtos que funcionam como curtíssimas metragens, ou até instantâneos de momentos mágicos em algum sítio, e apercebemo-nos com CPC que também nós já estivémos lá. A expressão prosa poética foi para aqui inventada. Dizendo-me menos que "O Esquema" é provavelmente melhor. Alguns dos pequenos textos são sublimes:
“As Metralhadoras
Uma das saídas da rotunda leva à ponte, a outra à auto-estrada. Uma perde-se no meio dos eucaliptos e dá pela mata meia dúzia de voltas incertas com muitas encruzilhadas e destinos suburbanos nas pontas. A quarta corta a direito em direcção às bombas de gasolina, à volta estão blocos de chapa e de contraplacado encostados para formarem casas precárias, há muitos buracos, crianças nuas debaixo das camisolas sujas, e para diante regressam os prédios e as pracetas, mais bairros, mais urbanizações, até começarem a saltar couves e galinhas do meio do betão e todas as noções da ordem e da lógica se curvarem numa mesma indistinta turbulência, em lances de quatro ou cinco andares. Além destas há ainda na rotunda outras duas entradas, ms ninguém segue agora por elas porque levam a restaurantes ou a vagas áreas desportivas. Bicho de muitas penas, a rotunda pulsa, detém-se e acelera-se, comprime-se e alarga-se com a regularidade com que golfa o sangue nas artérias. Os automóveis chegam aqui e travam, depois seguem, e entretanto entreolham-se.
(...)”
“Gregoriano
(...)Para lá daquele canavial viveu-se uma vez um grande amor sem que ninguém soubesse, ao fundo daquele carreiro muito estreito veio uma vez um melro e arrancou os olhos aos filhos porque lhos tinham fechado dentro de uma gaiola. As cobras armavam traições aos calcanhares das mulheres, os rapazes deitavam-se de bruços na erva, dizem que os cães se juntam no meio da floresta, onde as árvores se encostam tanto que não deixam a luz chegar até ao chão, e então são ferozes como lobos, temíveis e esfomeados. Há ninhos, colmeias, passos sobre as folhas secas, ms tudo se rende ao nevoeiro que sobe. Ao fim da tarde, só os cumes mais altos ainda não se afogaram na cegueira branca das toalhas de nuvens. Nas aldeias da serra, dentro de cada uma das casas, agora podia acontecer tudo.”
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