sexta-feira, janeiro 01, 2010

O Que Faço Eu Aqui?

É para mim um prazer escrever sobre Bruce Chatwin. A sua vida, a sua história, é mais romance do que os seus livros, mas dela, da sua vida, não vou falar hoje. Com se sabe, faleceu de SIDA aos 48 anos de idade, mas escreveu o suficiente para “para muitos”, ser considerado “o escritor de viagens” da 2ª metade do século XX. O facto de muitas das histórias entremetidas nas suas descrições deambulatórias serem sua invenção, não acrescenta nem retira ao mérito, apenas o confirmam como grande escritor que é, inventor portanto.


Saiu em 2009 na Quetzal o último livro publicado em vida de Bruce Chatwin: “O Que Faço Eu Aqui?”. Esta foi a pergunta que Rimbaud se colocou na Etiópia. Diz-me muito, esta pergunta. Aqui, nesta Etiópia, ninguém me responde como pedido.

Trata o livro de uma colecção de texto de Chatwin muito diversos, onde fala de encontros com as mais diversas pessoas, familares, intelectuais, anónimos. As 1ªs páginas avançam sobre a sua doença – durante muito tempo oculta/mal entendida não como SIDA. No extremo oposto as últimas páginas rodeiam uma campanha eleitoral passada com a Sra. Indira Gandhi. Páginas mais patuscas, menos brilhantes.

Brilhante sim, e percebe-se que aqui está todo o fôlego do grande escritor e mais ainda, a sua alma, o seu ethos, o seu querer, o seu olhar, é tudo o que é escrito sobre os nómadas e o nomadismo. Muitas considerações são poesia em estado puro, e uma declaração de amor a uma forma de viver no mundo, neste planeta.

“A palavra “nómada” deriva do grego nomes, pastagem. Um nómada propriamente dito é um pastor itinerante, o dono e criador de animais domésticos. Chamar nómada a um caçador errante é não entender o sentido da palavra. A caça é uma técnica para matar animais, o nomadismo para os manter vivos. A psicologia do caçador é tão diferente da do nómada como este do agricultor. O nomadismo nasceu nos grandes espaços, terrenos demasiado áridos para serem cultivados em condições economicamente viáveis – savana, estepe, deserto e tundra; todas zonas capazes de prover às necessidades de uma população animal desde que esta se desloque. Para o nómada, a moralidade reside no movimento. Sem andar de um lado para outro, os animais morrem. Mas o agricultor está agrilhoado ao seu campo; se ele parte, as searas morrem.”


“A necessidade fundamental do movimento é confirmada por recentes estudos sobre a evolução humana. O professor John Napier demonstrou que a marcha a grandes passadas é uma adaptação, única entre os primatas, para percorrer distâncias consideráveis nas savanas sem fim. A marcha bípede tornou possível o uso da mão e a fabricação de objectos, o que levou ao aumento do cérebro da nossa espécie. Todos os bebés humanos mostram igualmente o seu desejo instintivo de movimento, chorando muitas vezes pela simples razão de não suportarem estar quietos. É raro ouvir uma criança chorar numa caravana nómada. A tenacidade com a qual os nómadas se agarram à sua maneira de viver, bem como a sua vivacidade de espírito, reflecte a satisfação produzida por estado de movimento perpétuo. É caminhando que os sedentários se vêem livres das suas frustrações. A Igreja medieval instituiu a peregrinação a pé como tratamento da melancolia homicida.


Mas há mais coisas neste livro: a revisão da história verdadeira de Chatwin ter sido apanhado por um golpe de estado no Benim. Reflexões, ou melhor, a abundante visão dos vários lados das relações franco-argelinas através da história de um crime em Marselha. Um lamento anticipatório sobre o Afeganistão escrito em 1980. Etc., etc.


“Mountain Travel, a agência que tinha organizado a nossa insignificante viagem, bem como a da Expedição Evereste, prometera-nos dez carregadores. Mas a maior parte dos xerpas estava ocupada a plantar batatas e, assim como assim, ficámos mias bem servidos com três iaques – ou antes, três dzoms, cruzamento de um iaque com uma vaca.
Enquanto decorriam os preparativos da viagem, fomos dar uma volta por Lukla. O fumo das chaminés elevava-se palcidamente; as janelas eram pintadas de brilhantes cores tibetanas; a cevada nos campos chegava até aos joelhos e já havia macieiras em flor. Para lá da aldeia, vimos os destroços dum Twin Otter cuja fuselagem era usada como latrina, as asas como cerca para bodes e o motor como peça ornamental no Buddha Lodge Hotel. Em Lukla, o catavento também é usado como bandeirola de orações.
Na volta, apontei para um eremitério no alto da encosta, rodeado de rododendros vermelhos.
- Quem é que lá vive? – perguntei a Sangye.
- Uma freira – disse ele fazendo uma careta e sorrindo. – Mas agora não mais freira porque fez um bebé.
- Quem é o pai?
- Um monge.”

Bruce Chatwin diz: “Toda a minha vida foi a procura do miraculoso”. E nós acreditamos.

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