domingo, agosto 01, 2010

A Vista de Castle Rock

Alice Munro é uma escritora canadiana especializada na escrita de contos. "A Vista de Castle Rock" nasce da necessidade que a escritora sentiu de escrever sobre a génese da sua família, cujas origens estão na Escócia. Castle Rock é em Edimburgo, e dali vê-se o mar. E há quem diga que se vê a América...


"O sol rompia agora entre as nuvens e iluminava o amontoado de pedra que eram as casas e as ruas abaixo deles, e as igrejas, cujos coruchéus não atinjiam esta altura, e as pequenas árvores e campos e, para além destes, uma vasta e prateada extensão de água. Por detrás desta divisava-se uma ténue faixa de terra, num tom verdoso e azul-acinzentado, uma parte batida pelo sol, a outra mergulhada na sombra, uma terra leve como a bruma e colada ao céu.
     "Então, eu não vos dizia?", disse o pai de Andrew. "América. Mas só se vê um nisquinho, só a costa. Lá, cada homem está sentado no meio da sua propriedade, e até os mendigos andam de carruagem."
     "Pois o mar não me parece tão largo como pensava", disse o homem que tinha deixado de cambalear. "Não parece que sejam precisas semanas para lá chegar."
     "Isso é por causa da altura a que estamos", disse o homem ao lado do pai de Andrew. "Como estamos muito alto, o mar não parece tão largo."
     "Tivemos sorte com o dia", disse o pai de Andrew. "Muitas vezes, sobe-se cá acima e só se vê névoa."
     Virou-se para Andrew.
     "E pronto, rapaz, já viste a América", disse ele. "Queira Deus que um dia a possas ver mais de perto."


Não sendo bem um livro de contos, também o é e a escritora assim o afirma no Prólogo, pois cada capítulo é mais ou menos autónomo, e registam-se saltos no tempo e nos degraus familiares que um romance familiar tipo saga normal e corrente não admitiria. Gostei mais dos capítulos/contos mais recentes, mais próximos, incluindo aqueles onde a escritora, enquanto jovem, ou adolescente, já está. Se autobiografia será, a escritora defende-se afirmando a muita ficcionalização da trama. Aceitamos. Como nos seus contos de que já falei, aqui e ali a vida quase normal desta gente ganha negras asas e explode, quebra, decide em ângulo recto girar, igual a escrita de Alice Munro onde o abismo nos pode surpreender ao virar da página, logo após uma discreta descrição de uma quinta, de uma paisagem ou de alguém.


     "As raposas interessavam-lhe cada vez mais. Seguia-lhes a pista desde os ribeiros até às pequenas e escarpadas colinas arenosas que em certos locais se erguem entre o bosque e as pastagens - elas adoram essas colinas arenosas à noite. O meu pai aprendeu a ferver as armadilhas em água e casca de ácer para lhes retiram o cheiro a metal. Essas armadilhas eram deixadas em campo aberto, cobertas por areia.
     Como é que se mata uma raposa depois de a apanhar? Não convém dar-lhe um tiro, pois o buraco da bala e o cheiro do sangue estragam a pele.
     Primeiro atordoamo-la golpeando-a com um pau comprido e resistente, depois pisando-la no coração.
     As raposas selvagens são habitualmente vermelhas. De vez em quando, porém, por efeito de uma mutação espontânea, surge uma raposa preta. O meu pai nunca tinha apanhado nenhuma. Mas sabia que alguns exemplares tinham sido apanhados e criados selectivamente para favorecer o aparecimento de pêlos brancos no lombo e na cauda. A essas chamavam-se raposas prateadas. A criação de raposas prateadas estava então nos seus começos, no Canadá."


Um livro que não facilita, que não ajuda, que não acrescenta no sentido de ensinar, avisar, blablabla. Um grande livro. E é só. E é muito.


     "A mulher trabalhava numa loja de tecidos da vila.
     "E a reputação dela não era propriamente imaculada", disse a tia Charlie, como se fizesse uma revelação amarga e a contragosto.
     Tinha havido amiúde outras raparigas, outras mulheres. Era essa a origem das discussões entre eles. Foi isso o que levou a minha avó a pontapear os queixos do seu pretendente e a empurrá-lo da charrete, que era dele, regressando depois para casa no cavalo dele. Foi por isso que lhe atirou uma ciaxa de chocolates à cara. E que os pisou depois, para que ninguém os pudesse apanhar e degustar, no caso de ele ser ganacioso e descarado ao ponto de os ir oferecer a outra.
     Mas dessa vez ela permaneceu calma como um icebergue.
     A única coisa que disse foi, "Bom, vais ter de casar com ela, não é assim?"
     Leo disse que não tinha tanta certeza que a criança fosse dele.
     E ela disse, "Mas também não tens a certeza de que não é."
     Ele disse que a coisa se podia resolver se ele acedesse a pagar o sustento do bebé. Disse que tinha quase a certeza que era apenas nisso que ela estava interessada.
     "Mas não é o que me interessa a mim", disse Selina. Depois acrescentou que o que lhe interessava, a ela, era que ele fizesse o que estava certo."

0 Comentário(s):

Enviar um comentário