Viagens 1978-2008
A definição de o que é a Poesia – logo a maiúscula dá começo às hostilidades – não é fácil, aviso. Nestes últimos estranhos tempos portugueses a definição estava algo banalizada pelo bucolismo universal da nossa poesia mais recente.
Não é o caso do poeta em jogo, Gil de Carvalho. Que sei dele? Pouco ou nada. Que nos 1ºs livros intrometia o apelido “Nozes” na nomeação. Que os termos, a temática variaram, mas a opacidade desta poesia foi-se mantendo ao longo dos anos. Roçando a não poesia, a sua ausência ou o seu carácter opcional. Como se a poesia tivesse que partir de quem lê, num jogo quase similar a Duchamp.
A Cegonha na Torre da Pensão do Fortunato
A cegonha
Da torre
Na pensão
Do Fortunato
Mas não, não será bem assim: o léxico, raro, os sítios escolhidos, o jogo sexual seco e redondo. As viagens, nos múltiplos sentidos. Cada palavra um abre-latas, um âmbar.
Sprezzatura
Manhã alta, no cabo levantada.
O mar parece correr da direita
Para a esquerda da tua roupa.
Soergue-te no rio: os botões mete
Nas casas, ao contrário.
Um lance de arreios. deitado
Sobre os arrabaldes, fungíveis.
Papéis cobrindo janelas ratadas
Mas belas: a sprezzatura.
Embarcações de cima para baixo
Da névoa, contrária à terra.
Esta avenida transborda do cheiro
Áspero das tinturarias.
Eis portanto um livro que desafia, que desagrada, que afasta e repele, mas ao qual se volta sempre rodando a página. Poesia estranhamente descritiva, se repararmos bem. E com um curioso diálogo com outras formas, jogando com "os dois extremos da Eurásia".
Espias ligeiras, asiáticas.
Que lá no alto - o azul
Que se via, reciclava. Seria
O fumo das primeiras cidades.
Gil de Carvalho nasceu em 1954, em Lisboa, escreveu no Expresso, na Ler, no Colóquio-Letras. Traduziu bastante poesia oriental, sobretudo chinesa, que distribuiu por várias antologias publicadas cá.
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