domingo, agosto 01, 2010

A Mulher Certa.

Este livro de Sandor Marai foi feito em dois tempos.
Consiste em três monólogos e um epílogo, outro monólogo. Monólogos que foram escritos em tempos diferentes pelo escritor, e que são a voz de pessoas que se cruzaram, amaram-se - ou não, e se destruiram - ou não. O título português "A Mulher Certa" nasce de uma 1ª edição incompleta do livro e é uma expressão que surge com frequência no 1º dos monólogos mas que não tem sequência nos monólogos seguintes, donde uma má escolha. Os dois primeiros monólogos forma escritos nos anos quarenta. O 3º também mas foi reescrito em 78 e o epílogo foi escrito apenas em 79. 3º monólogo e epílogo apareceram editados sob o título "Judit... e um Epílogo."
Budapeste, entre as duas guerras. Ouvimos 1º a mulher de um rico herdeiro industrial a contar a história do seu casamento e de como falhou, aparentemente porque o seu marido tinha um velho fascínio por uma mulher do campo, Judit.
A seguir corre a versão dele, a do marido, a contar como falhou o 1º e depois o seu 2º casamento com Judit.


     "Esta mulher era uma criada de servir. Tinha dezasseis anos quando nos conhecemos. Trabalhava em nossa casa, como doméstica. Não quero aborrecer-te com uns amores colegiais. Mas sempre te quero contar como tudo começou e acabou. O que fica no meio, se calhar, nem para mim é muito claro.
     Tudo começou porque, em minha casa, ninguém se atrevia a amar outrém."


E depois a versão mais longa, a de Judit, já depois da 2ª Grande Guerra e em Roma com um amante de circunstância, cuja voz finalmente constitui o breve epílogo.
Sandor Marai, como já escrevi, foi homem de uma só mulher, cujo desaparecimento no exílio aliás precipitou o seu suicídio. No entanto, este livro é uma visão desapiedada - mas aplicável apenas a um definido tempo, a uma definida sociedade? - do casamento e das relações humanas mais íntimas. Nada coincide nas três versões apresentadas para os mesmos eventos. Nada. Apercebemo-nos bem de que a história é a mesma, mas que diferentes os olhos. As versões são progressivamente mais extensas (111, 113 e 132 pp.), sendo a maior a de Judit, pois inclusivé cobre um espaço temporal maior, incluindo o pós-guerra. Significará esta maior extensão que Marai tome partido por Judit? Não se pode dizer, embora o epílogo seja na prática uma homenagem e "legitimação " da vida "selvagem" e difícil que Judit viveu. São especialmente marcantes as páginas sobre o pós-guerra imediato e o encontro dela com o seu já então ex-marido.
Pelas circunstâncias temporais de escrita este livro é algo incerto no percurso, como aliás os verdadeiros monólogos costumam ser, mas Sandor Marai vence, mais uma vez, pelo poder da sua escrita envolvente, com um uso forte da 1ª pessoa, intenso, sublinhado. Este é um romance falado. Mais de quatrocentas páginas dele, mas parece que havia mesmo muito para dizer, e nós não nos cansamos de ouvir.

     "Mas esse homem também sabia que a vingança é pecado. Qualquer tipo de vingança é pecado... e não há nenhuma vingança legítima. Só temos direito à justiça... Ninguém tem o direito de vingar-se. E porque era rico e também cirstão, mas não conseguia acertar as duas condições nem abandonar nenhuma delas... estava cheio de sentimento de culpa. Porque me olha assim, como se eu estivesse doida?...
     Estou a falar dele, do meu marido. Que um dia se encontrou comigo porque voltava a haver uma ponte em Budapeste. E eu, diante de milhares de pessoas, lancei-me ao pescoço dele.
     Ele saiu da fila, mas não se mexeu. Nem me afastou. Não tenhas medo que não me beijou a mão à vista daqueles quirguistaneses e de trémulos mendigos esfarrapados. Era demasiado bem-educado para fazer uma coisa de tão mau-gosto. Ficou-se, à espera que aquela cena tão patética acabasse. Quedou sereno, e eu, de olhos cerrados, em lágrimas, olhava o seu rosto, como as mulheres vêem o rosto da criança ainda bebé nas suas barrigas. Não são precisos olhos para vermos o que é nosso.
     Mas, enquanto me agarrava com todas as forças ao pescoço daquele homem, aconteceu qualquer coisa. Sobreveio aquele cheiro, o odor do corpo do meu marido... Agora, ouve bem."

0 Comentário(s):

Enviar um comentário