sábado, junho 11, 2011

Amar de Novo

Este romance de Doris Lessing intitula-se originalmente "Love Again" e, parece-me a mim que o indefinido da expressão reflecte melhor o que acontece e transpira deste assaz longo texto, datado de 1995.
E o que acontece e transpira? Uma escritora viúva de 65 anos, Sarah Durham, ligada ao mundo do teatro decide escrever a vida trágica de uma crioula caribenha, escritora, compositora, uma daquelas figuras que só o século XIX, assume-se pôde produzir. O romance acompanha as peripécias da produção da peça em vários cenários e condições, e em simultâneo o jogo de relacionamentos que vai acontecendo entre os vários figurantes, actores, produtores, encenadores, mecenas, etc. Neste percorrer dos processos de pensamento, produção, representação, venda e dissolução de uma peça, o retrato criado é muito bom. A nossa viúva enceta uma relação de amizade muito próxima com Stephen, um homem que se apaixonou... pela falecida heroína da peça (!), e apaixona-se ela por sua vez por dois homens em rápida sucessão, 37 e 30 anos mais novos do que ela. Durante todas estas centenas de páginas só um beijo acontece, e, no entanto, linhas sobre linhas relatam cirurgicamente o estado apaixonado que é vivido por Sarah, as alterações cutâneas, musculares, aponevróticas, organolépticas, etc. Nestas linhas Doris Lessing é perfeita, é sublime. Até porque efectivamente assim é a paixão. As duas figuras masculinas onde a nossa protagonista "entra", e "sai", e "entra", e volta a "sair", são ao fim e ao cabo apenas pretextos para que um "estado de amor" quase perene esteja, seja, longamente. Porque em intervalo os corpos assim ficam, entre as noites suspira-se pela que (não) houve, anseia-se em cansaço pela que aí (não) vem. Noites onde portanto nunca nada lhe acontece. Ela não "ama", está "em amor", uma variante dos estados febris que, se calhar, um dia destes, indicarão tratamento médico, ou pelo menos, vigilância apertada. No fim sobrevive, "sai", e descansa, ela também vigiando. No de sobreviver o livro não é unânime, há feridos, e há um morto. É de ler, há páginas que de tão soberbas - e correctas - atrapalham...



"Gosto de estar consigo", declarara o homem, e esta frase não só se limitara a demonstrar a franqueza (a generosidade) que seria de esperar numa pessoa como ele como acrescentara um elemento novo às coisas: a surpresa. Será que ele considerava que a satisfação tinha motivos de surpresa? Bom, pela parte que lhe tocava, a verdade é que também Sarah não estava habituada àquele tipo de prazer. Fora obrigada a trabalhar tanto, a vida fizera-a enfrentar tantas responsabilidades... Caramba, mas por certo um homem com tantos privilégios quanto ele... Ora, sabia bem que aquilo era algo que só funcionava quando estavam juntos, que as portas daquela espécie de jardim das delícias permaneciam cerradas até ao momento em que ambos se encontravam.
No meio de tudo isto, ei-los a abanar a cabeça e a mimosearem-se com sorrisos irónicos, tão convencidos estavam de que uma afinidade assim só podia ser classificada como improvável. Um verdadeiro encanto. Era como receber um presente maravilhosamente embrulhado, abri-lo e descobrir que lá dentro se encontra o que temos desejado há anos mas que nunca sonhámos receber. A vida de Sarah transformara-se em algo maravilhoso graças a este Stephen-Não-Sei-Quê, que por acaso se apaixonara por uma mulher que já não pertencia ao mundo dos vivos.
(...)
"Você é louco, Stephen." "Claro que sou. Não tenho quaisquer problemas em o admitir, Sarah." Contudo, dizer que alguém é louco é transformá-lo num ser inofensivo. Sem dúvida, aquela era mesmo uma palavra traiçoeira."



"Sarah voltou a olhar-se ao espelho, elogiando o que lhe agradava, censurando o que não podia elogiar, e, ao lembrar-se de Henry, deixou-se levar por uma onda de ternura. Porém, a ternura pouco mais é do que uma corda esticada sobre o abismo. Podia muito bem sonhar com os braços de Henry passados em volta do seu corpo, mas bastava colocar a situação em palavras para a cena se tornar caricata, merecedora de pouco mais de uma gargalhada irónica. Uma mulher com mais de 60 anos apaixonada por um rapaz com metade da sua idade... Como teria ela descrito aquilo aos 20 anos? Ou mesmo aos 30? (E era como se estivesse a ver o seu rosto de rapariga, severo, cruel, arrogante.) De nada servia utilizar a desculpa de que também ele a amava. Claro que Henry queria ir para a cama consigo e, se o fizesse, tal por certo se ficaria a dever à paixão, mas também - e como lhe magoava algo tão cruel quanto aquilo! - a uma certa dose de curiosidade. "Como será fazer amor com uma mulher com o dobro da minha idade?" E teria ela coragem de se virar para aquele amante e confessar que já não dormia com um homem há cerca de vinte anos? "Ao fim e ao cabo, vinte anos pouco ou nada representam para mim... por certo já ouviste dizer que, com o passar dos anos, o tempo adquire uma outra dimensão... talvez até já o tenhas começado a sentir, enquanto que, para alguém com a tua idade, vinte anos equivalem a quase dois terços de vida." Não, ali estava algo que nem mesmo ela, cuja franqueza em questões amorosas já lhe trouxera alguns problemas, seria capaz de confessar a homem algum. Contudo, se fossem mesmo para a cama, seria exactamente isto que estaria a pensar: "Há vinte anos que não dormia com um homem.""



"Estava-se agora em meados de Agosto, e há já algumas semanas que deixara de sentir a angústia que tanto a atormentara. Tal como previra, mal recordava o quanto aquela fora intensa, provando assim que a Natureza (ou fosse lá o que fosse) não necessita de transformar os seus filhos em escravos de recordações dolorosas. Via-se de novo confrontada com momentos deveras agradáveis, tirando prazer de uma série de pequenas sensações físicas, por exemplo o contacto da sola nua do pé com a madeira do chão, o calor do Sol a aquecer-lhe a pele, o cheiro a café ou a terra, o odor ténue do orvalhovnas pedras. Voltara a ser aquela mulher que nunca chorava, se bem que a ideia de uma boa crise de lágrimas tivesse o seu quê de tentador. Contudo, tudo levava a crer que se esquecera de como era chorar.
(...)
Podia voltar a piorar, podia voltar à beira do abismo - era com frequência que, no rosto das pessoas de idade, nos seus olhos, via sinais de uma tristeza estéril que só agora compreendia. Oh, não, não queria nada daquilo! Recusava-se a aceitá-lo. E a única forma de o manter afastado, a esse abutre que se alimenta exclusivamente dos corações humanos, era mantendo a vigilância."




P.S.: Doris Lessing agradece/invoca de entrada a Stendhal, Proust, Goethe e D.H.Lawrence a cartografia para este romance. Prova de como para ela este era "alguma coisa e mais ainda!" . Pena as Publicações Europa-América ou não terem cuidado a tradução ou a revisão do texto. As if a minor task it was...

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