domingo, dezembro 26, 2010

A Mecânica Da Ficção

Rogério Casanova traduziu para a Quetzal este texto corrido do guru da nova crítica literária, James Wood, um inglês que emigrou para os Estados Unidos para ser uma referência do New Yorker.  Na prática estas pouco mais que (pequenas) duzentas e cinquenta páginas são com que uma grande conferência - o discurso às vezes é quase oral - sobre o que é a ficção moderna, definida a partir de Flaubert e dos russos e passando por Proust, Joyce, Nabokov, Roth e... Saramago! Há muito mais, e há, pelo meio, viagens´no tempo até Homero, Shakespeare, Cervantes, a Bíblia.
Lê-se bem, percebe-se que há aqui um novo cânone a ser estabelecido - até que alguém venha para o discutir... mas terá que ser muito bom... lê-se mesmo muito bem.
É este livro constituido por cento e vinte e três pequenos textos - que asimm aparecem numerados - agrupados em dez capítulos. Darei exemplos da substância com que estamos a lidar.



"                                                                        55

No ensaio de Orwell, " A Hanging", o escritor observa um condenado à morte, a caminho da forca, desviar-se para evitar uma poça de água. Para Orwell, isto representa precisamente o "mistério" da vida que está prestes a ser terminada: mesmo quando não há nenhum motivo racional para isso, o homem ainda pensa em manter os sapatos limpos. É um acto "irrelevante" (e uma maravilhosa proeza de observação por parte de Orwell). Agora suponhamos que isto era um pedaço de ficção e não um ensaio. E tem havido, de facto, muita especulação sobre o rácio entre facto e ficção em certos ensaios de Orwell. O evitar da poça de água seria precisamente o tipo de detalhe soberbo que, digamos, Tolstói poderia brandir; Guerra e Paz tem uma cena de execução bastante próxima, em espírito, do ensaio de Orwell, e até pode dar-se o caso de Orwell ter palmado o detalhe de Tolstói. Em Guerra e Paz, Pierre observa um homem a ser fuzilado pelas tropas francesas, e repara que, mesmo antes da morte, o homem ajusta a sua venda, porque estava desconfortavelmente apertada.
(...)"


"                                                                       102

Em Sea and Sardinia, Lawrence descreve as pernas curtas do rei Vítor Emanuel; mas refere-se às "suas pequenas pernas curtas". Tecnicamente, não há necessidade para "pequenas" e "curtas" na mesma frase. Se Lawrence fosse um estudante, o seu professor teria escrito "redundância" na margem da folha e riscado um dos adjectivos. Mas se repetirmos a frase em voz alta, o que é redundante passa a parecer inevitável. A frase precisa das duas palavras, porque só as duas juntas produzem o efeito cómico. E "pequenas" não significa exactamente o mesmo que "curtas": as duas palavras desfrutam da companhia uma da outra; e "pequenas pernas curtas" é mais original do que "curtas pernas pequenas", por ser mais eufónico, mais absurdo, forçando-nos a tropeçar ligeiramente - um tropeção de pernas curtas - no ritmo inesperado."



"                                                                       108

(...)
O tipo de metáfora que mais me agrada, com aqueles quatro exemplos sobre fogo, é a que desfamiliariza para logo de seguida iluminar, e que, ao efectuar tão bem a segunda acção , nos faz esquecer a primeira. O resultado é um choque inesperado, seguido de uma sensação de inevitabilidade. Em Rumo Ao Farol, depois de deitar os seus filhos, Mrs. Ramsay fecha cuidadosamente a porta do quarto, "a língua da porta estendendo-se lentamente na fechadura". A metáfora nessa frase não está prorpiamente no uso de "língua", que é bastante convencional (a maioria das pessoas refere-se às línguas das fechaduras), estando antes refundida no verbo "estender-se". O verbo estende a manobra: não será esta a melhor descrição que já lemos de alguém a fechar len-ta-men-te uma porta de forma a não acordar as crianças?
(...)"

0 Comentário(s):

Enviar um comentário