domingo, setembro 26, 2010

História Íntima da Humanidade.

Este livro do historiador inglês Theodore Zeldin, traduzido para português sob a chancela da Teorema em 1997, e originalmente de 1994, engana sobretudo pela capa, replicada na lombada, onde aparece a figura barroca de uma mulher, deusa, ninfa, o que fôr, dispensada do mais leve traje, a perna anterior levemente recolhida para permitir algo de pudor. A capa original não vai por aí...
Não, esta história não é sobre sexo. E de história no sentido clássico do termo tem bem pouco.


""A minha vida é um falhanço." É este o veredicto de Juliette a respeito de si mesma, embora raramente o anuncie em público. A sua vida poderia ter sido diferente? Sim, tal como a história da humanidade também poderia ter sido diferente."

A história de Juliette prolonga-se por mais quatro páginas. Histórias como a dela vão suceder-se ao longo do livro, uma, duas ou três, ou até mais, em cada capítulo. Cada história vai pretender ilustrar um aspecto, uma rugosidade, um ponto em claro nas relações humanas. O autor ilustra o quadro indo pescar coisas ao passado, exemplificando assim como as coisas evoluiram ou, pelo contrário, como há quinhentos anos por ex., já as coisas assim estavam.
Voltando a Juliette, ela é uma mulher-a-dias, e considera, aos 51 anos, que a sua "vida está acabada." Zeldin utiliza o exemplo desta mulher para tecer várias considerações sobre a escravatura:

"Antes de doze milhões de africanos terem sido raptados para serem escravizados no Novo Mundo, as principais vítimas eram os eslavos, que deram o seu nome à escravatura (slav/slave). Capturados por romanos, cristãos, muçulmanos, viquingues e tártaros, foram exportados para todo o mundo. A palavra "slav" acabou por vir a siginificar "estrangeiro". A maior parte das religiões ensinavam que era admissível escravizar os estrangeiros. As crianças britânicas eram exportadas como escravas - e as raparigas engordadas para atingirem melhores preços - e acabavam como slavs. Mais recentemente, quando os eslavos se descobriram dominados por tiranos e não viram maneira de escapar, alguns deles concluíram, com tristeza, que deveria existir qualquer coisa no carácter dos eslavos que os condenava a serem escravizados. Trata-se de um raciocínio falso, que parte do princípio do que o que aconteceu tinha de acontecer. É o tipo de raciocínio imposto aos escravos para os fazer desesperar.
O medo foi sempre mais poderoso do que o desejo de liberdade: os humanos não nascem livres."

E assim sucessivamente. São vinte e cinco capítulos que tratam de vinte e cinco propostas de leitura desta ou aquela emoção, deste ou aquele traço ou desenho ou esquema do relacionamento humano, que Zeldin enquadra primeiro através de exemplos actuais, resultados de entrevistas que ele própio fez, quase só mulheres, e francesas. França é aliás a especialidade deste britânico. Depois, através dos tempos - ah, a História... - voltando lá atrás, quando nós... éramos outros, ou talvez não, e comparando, exemplificando, desenterrando... faz-se luz!
Os títulos dos capítulos são sugestivos: "12. Porque se tornou cada vez mais difícil destruir os nossos inimigos. 18. Porque razão tem sido tão frágil a amizade entre os homens e as mulheres. 24. Como os humanos se tornam hospitaleiros uns para os outros".

"Catherine ensina as pessoas a alcançarem o êxito, o que quer dizer ter êxito a ganhar a vida, fazer lucros, atingir a prosperidade. São tudo coisas que envolvem dinheiro. Numa pequena sala em que uma dúzia de pessoas são uma multidão, num modesto bloco de escritórios, Catherine dá um curso às pessoas que querem montar os seus próprios negócios, e ela é simultaneamente a directora e a professora. A maior parte dos estudantes é desempregada. Só um terço, quanto muito, conseguirá transformar o seu sonho em realidade, e mesmo nesses haverá alguns que falharão. A própria Catherine, apesar de se tratar de uma pessoa muito impressionante como ser humano e de ser extraordinariamente calorosa, provocando o entusiasmo até nos estudantes mais tímidos e conseguindo falar com uma lucidez, fluência e velocidade espantosas, não é um êxito total em termos de dinheiro, lucros e resultados. Não é rica, está divorciada, nunca terminou a tese que desejava escrever e nunca foi a gestora de negócios que outrora pretendeu vir a ser. Como se lida com o facto de a realidade se recusar a parecer-se com aquilo que sonhámos?"

"Os Estados Unidos foram notáveis pela rapidez e versatilidade com que mudaram de uma droga para outra, de uma fuga para outra. (...) Nos anos de 1830-50, teve lugar uma mudança abrupta: o consumo de álcool desceu para metade, e a partir daí, a dependência da garrafa passou a ser a especialidade de uma minoria. Porém, por essa altura desenvolveu-se uma verdadeira loucura por remédios de marca com um alto conteúdo de ópio, que atingiu o seu máximo em 1900 e quadruplicou a importação de ópio por habitante. Foi então que os médicos começaram a ter dúvidas. Assim, durante a década seguinte, fumar ópio passou a ser uma moda, até 1909, ano em que a importação do ópio foi proibida. Os cigarros ocuparam o seu lugar e o consumo aumentou muito durante a Primeira Guerra Mundial. Quando a proibição do álcool se espalhou por todo o país, a partir do Sul e do Oeste, as bebidas de cola com um toque de cocaína surgiram como salvadoras. A cocaína foi declarada como sendo a melhor forma de fugir ao álcool, ópio e morfina, e também como um excelente tónico geral. William Hammond, médico-chefe do Exército, anunciou orgulhosamente que tomava um copo de vinho de cocaína a cada refeição. (...)
Perguntar quais os resultados práticos da fuga é o mesmo que não perceber o sentido da fuga, que inclui a fuga às finalidades. Os que pretendem uma finalidade devem olhar muito para lá da fuga."

Este livro de mais de 450 páginas, faz-se um pouco extenso, mas se lido com algum desprendimento, digere-se bem. Alterna excelentes textos e verdadeiros achados de associação e comparação de atitudes e pensamentos através dos tempos  com ocasionais bocados de "bom-senso-e-nada-mais", sendo estes porém apenas uma pequena minoria. O texto parece sempre estar a ser lido por uma calma e pausada voz, o que às vezes impede de nos apercebermos dos melhores aforismos, ou de não perdermos a linha principal de pensamento que, também, às vezes, não é nada linear. Muitos dos fait-divers históricos referidos fazem-nos pensar: "era mesmo assim?" Nada me faz crer que o autor não esteja na posse da razão, e a bibliografia citada é muita. Este livro lê-se muito bem, se com pausas.
Não se esperem resultados "práticos" da leitura deste livro, mais ainda porque ele foi escrito antes do boom da internet e sobretudo das suas redes sociais, etc. É o "feelgoodbook" mais inesperado, desorganizado e por outro lado inventivo que eu já li. Eu não sou um especialista neste tipo de livros, nunca li Paulo Coelho, mas este livro não lhe faz competição. Recomendo. O Independent, em 1994, recomendava-o também, assim.

"A história, com a sua infindável procissão de gente que passa, e cujos encontros constituíram, na sua maior parte, oportunidades falhadas, tem sido quase sempre uma crónica de capacidades desperdiçadas. Porém, da próxima vez que duas pessoas se encontrarem, o resultado pode ser diferente. É essa a origem da ansiedade, mas é também a da esperança, e a esperança é a origem da humanidade."

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