Três primeiros livros de poesia de três poetisas.
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Cada uma escolheu uma estratégia diferente, parece-me, e cada uma deleas tem méritos - quero eu dizer, estritamente, bons poemas... - e deméritos, ou seja, poemas menos conseguidos.
E mais não digo por agora, direi eventualmente daqui a um bocado.
Teresa M. G. Jardim (TMGJ) publica na Ass&Alvim o livro "Jogos Radicais". O blogue da editora fala de uma estreia fulgurante, um comentário anónimo discorda. Assim estamos.
A solidão é muito presente, a sobrevida, a revolução já terá acontecido, do radicalismo restarão os móveis muitas vezes invocados. Aqui e ali o som é conseguido.
"TELEVISÃO
A televisão é uma fotografia de guerra
que mexe. É um beijo mais largo que a minha cabeça.
E uma caixa de sabão que não se cansa de lavar mais branco.
E faz muita companhia, a mim, aos livros, ao cão.
O arroz está mais caro. A água e a luz também.
Eu estou mais gorda e não passou na televisão:
a minha televisão é sensível, preocupa-se comigo,
é como se fosse uma pessoa; melhor
que as pessoas amigas que me contam as rugas
e os cabelos brancos, resmungam
por tudo e por nada, e calçariam luvas
para apanhar do chão um livro
ou mesmo o meu coração se caísse."
Margarida Ferra fez sair o seu primeiro livro de poesia na &etc., o que só por si, atesta bom gosto de ambas as partes. Chama-se "Curso Intensivo de Jardinagem", o livro. A capa é de Luis Henriques e glosa o título. O livro consta de quatro capítulos, "Jardinagem", "Quatro Divisões", "Playlist" e "Isto Não São Versos". Toda esta poesia me permitiu um diálogo interessante, senti-me, confesso, bastante em casa ao lê-la. É muito confessional, às vezes demasiado. Nem sempre a confissão deixa de ser apenas isso. Outras vezes sim. O título tem a sua ironia, assume-se que são as mulheres que fazem a jardinagem. E há uma lógica doméstica por explicar. Porquê o curso intensivo? Uma criada ausência, um espaço que ficou vazio, vidé "Playlist"? Margarida Ferra trabalha na Quetzal, a sua história sucinta está no Google.
"ÁLBUM
Dobro a roupa
em monte
os doze meses inteiros,
e tento juntar, incapaz,
duas peças com sentido.As que ficam,
isoladas
sem uso provável,
escondo-as dentro de páginas brancas:
entre cada uma
papel vegetal quase transparente
e cantos antigos de colar fotografias.
Em dez anos encontro
um herbário inesperado:
folhas perenes e secas,
as meias cerzidas, únicas,
são exemplos raros destes dias
quase extintos."
Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta."
Margarida Vale de Gato, já conhecida no meio por traduções e colaborações avulsas, publicou o primeiro livro "Mulher Ao Mar", na Mariposa Azul, também com (excelentes) capa e desenhos de Luis Henriques. Curiosamente ou não o livro foi estreado publicamente a 25 do 04, com direito a texto lido de Hélia Correia e verbena dançante a posteriori. Bom... Um apadrinhamento por Hélia Correia e - pouco depois no Ipsilon - pelo Pedro Mexia, parece... estranho! E por outro lado, o título do texto lido por HC - e que acompanha a já 2ª edição (!) do livrinho - "Revolução", aponta para algo como que inédito, novo, muito novo...
"ÉMULOS
Foi como amor aquilo que fizemos
ou tacto tácito – os dois carentes
e sem manhã sujeitos ao presente;
foi logro aceite quando nos fodemos.
Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
o acto de abraçarmos? Foi candura
o termos juntos sexo com ternura
num clima de aparato e de sigilo.
Se virmos bem ninguém foi iludido
de que era a coisa em si – só o placebo
em certo excesso que acelera a líbido.
E eu, palavrosa, injusta desconcebo
o zelo de que nada fosse dito
e quanto quis tocar em estado líquido."
O bem fazer do soneto não esconde que "já ouvimos isto", não? The "f" word? Amigas, amigos... estamos contentes pelo Sérgio Godinho ter reencarnado, oh, perdão, a Maria Teresa Horta? Estão no altar as santas do costume, Plath, Dickinson, Akhmatova...
O título é giro, confesso, e a poesia está boa e recomenda-se por aqui, por ali, enfim, o da Hélia é daquelas coisas...
"PRENDAS
Cabalmente instruídas mas
pouco experimentadassomos as cabras-
-cegas da literatura.
Sustém-nos o tédio
e a lonjura sujeitamos
o verso a tarefas prendadas
e a frase lavramo-la com
a mesma fastidiosa ternura
dos trabalhos de costura:
raros acontecem os poemas
um ror de vezes a escrita
sob censura traça-se
um verso emenda-se
a mão o avesso não
falta à compostura.
o mundo repartido
em rimas assi-
métricas cesuras contra
tempos, rotundamente
Fracassamos.
Porque não escrevemos?
Porque as nossas vidas são falhas
de convulsões e a palavra é
Arte dócil como nós
e paciente aguarda
e pega no talher com
etiqueta e leva
só com todos já
servidos
a apurada
refeição à nossa boca."
Óptimo poema. Curiosamente, este é o único dos três livros a ser dedicado a alguém, um tal de Manuel Dias.
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