sexta-feira, setembro 17, 2010

Três primeiros livros de poesia de três poetisas.

Saíram recentemente "cá para fora" três colectaneas de poemas que são três estreias no panorama poético português. Estariam as senhoras avisadas do caminho minado que se dispuseram a caminhar?

Cada uma escolheu uma estratégia diferente, parece-me, e cada uma deleas tem méritos - quero eu dizer, estritamente, bons poemas... - e deméritos, ou seja, poemas menos conseguidos.
E mais não digo por agora, direi eventualmente daqui a um bocado.
Teresa M. G. Jardim (TMGJ) publica na Ass&Alvim o livro "Jogos Radicais". O blogue da editora fala de uma estreia fulgurante, um comentário anónimo discorda. Assim estamos.
A solidão é muito presente, a sobrevida, a revolução já terá acontecido, do radicalismo restarão os móveis muitas vezes invocados. Aqui e ali o som é conseguido.



"TELEVISÃO


A televisão é uma fotografia de guerra
que mexe. É um beijo mais largo que a minha cabeça.
E uma caixa de sabão que não se cansa de lavar mais branco.
E faz muita companhia, a mim, aos livros, ao cão.

O arroz está mais caro. A água e a luz também.
Eu estou mais gorda e não passou na televisão:
a minha televisão é sensível, preocupa-se comigo,
é como se fosse uma pessoa; melhor
que as pessoas amigas que me contam as rugas
e os cabelos brancos, resmungam
por tudo e por nada, e calçariam luvas
para apanhar do chão um livro
ou mesmo o meu coração se caísse."


Margarida Ferra fez sair o seu primeiro livro de poesia na &etc., o que só por si, atesta bom gosto de ambas as partes. Chama-se "Curso Intensivo de Jardinagem", o livro. A capa é de Luis Henriques e glosa o título. O livro consta de quatro capítulos, "Jardinagem", "Quatro Divisões", "Playlist" e "Isto Não São Versos". Toda esta poesia me permitiu um diálogo interessante, senti-me, confesso, bastante em casa ao lê-la. É muito confessional, às vezes demasiado. Nem sempre a confissão deixa de ser apenas isso. Outras vezes sim. O título tem a sua ironia, assume-se que são as mulheres que fazem a jardinagem. E há uma lógica doméstica por explicar. Porquê o curso intensivo? Uma criada ausência, um espaço que ficou vazio, vidé "Playlist"? Margarida Ferra trabalha na Quetzal, a sua história sucinta está no Google.




"ÁLBUM


Dobro a roupa
em monte
os doze meses inteiros,
e tento juntar, incapaz,
duas peças com sentido.
As que ficam,
isoladas
sem uso provável,
escondo-as dentro de páginas brancas:
entre cada uma
papel vegetal quase transparente
e cantos antigos de colar fotografias.

Em dez anos encontro
um herbário inesperado:
folhas perenes e secas,
as meias cerzidas, únicas,
são exemplos raros destes dias
quase extintos."


"MORADA


Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta."


Margarida Vale de Gato, já conhecida no meio por traduções e colaborações avulsas, publicou o primeiro livro "Mulher Ao Mar", na Mariposa Azul, também com (excelentes) capa e desenhos de Luis Henriques. Curiosamente ou não o livro foi estreado publicamente a 25 do 04, com direito a texto lido de Hélia Correia e verbena dançante a posteriori. Bom... Um apadrinhamento por Hélia Correia e - pouco depois no Ipsilon - pelo Pedro Mexia, parece... estranho! E por outro lado, o título do texto lido por HC - e que acompanha a já 2ª edição (!) do livrinho - "Revolução", aponta para algo como que inédito, novo, muito novo...


"ÉMULOS


Foi como amor aquilo que fizemos
ou tacto tácito – os dois carentes
e sem manhã sujeitos ao presente;
foi logro aceite quando nos fodemos.

Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
o acto de abraçarmos? Foi candura
o termos juntos sexo com ternura
num clima de aparato e de sigilo.

Se virmos bem ninguém foi iludido
de que era a coisa em si – só o placebo
em certo excesso que acelera a líbido.

E eu, palavrosa, injusta desconcebo
o zelo de que nada fosse dito
e quanto quis tocar em estado líquido."


O bem fazer do soneto não esconde que "já ouvimos isto", não? The "f" word? Amigas, amigos... estamos contentes pelo Sérgio Godinho ter reencarnado, oh, perdão, a Maria Teresa Horta? Estão no altar as santas do costume, Plath, Dickinson, Akhmatova...
O título é giro, confesso, e a poesia está boa e recomenda-se por aqui, por ali, enfim, o da Hélia é daquelas coisas...


"PRENDAS


Cabalmente instruídas mas
pouco experimentadas
somos as cabras-
-cegas da literatura.
Sustém-nos o tédio
e a lonjura sujeitamos
o verso a tarefas prendadas
e a frase lavramo-la com
a mesma fastidiosa ternura

dos trabalhos de costura:
raros acontecem os poemas
um ror de vezes a escrita
sob censura traça-se
um verso emenda-se
a mão o avesso não
falta à compostura.

o mundo repartido
em rimas assi-
métricas cesuras contra
tempos, rotundamente
Fracassamos.
Porque não escrevemos?

Porque as nossas vidas são falhas
de convulsões e a palavra é
Arte dócil como nós
e paciente aguarda
e pega no talher com
etiqueta e leva
só com todos já
servidos
a apurada
refeição à nossa boca."


Óptimo poema. Curiosamente, este é o único dos três livros a ser dedicado a alguém, um tal de Manuel Dias.

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