Memórias de Adriano
Nunca tinha lido este livro por completo e de um só fôlego. É meu há bastantes anos (a "minha" capa é melhor do que esta...), comprei-o numa época mais feliz da minha existência, tenho ideia de ter sido numa feira do livro ou num mercado aberto, pelo menos a imagem está assim formada.
Lido por retalhos, a espaços, meia dúzia de páginas aqui e ali, logo percebi encontrar-me perante algo de enorme, de quase inabarcável. Não lido por completo, era obra preferida na minha biblioteca.
Agora em três dias a leitura completa fêz-se. Desta longa carta, deste longo pensamento dirigido no fim da vida ao seu neto adoptivo Marco, futuro imperador.
Como dizer que um livro não tem defeitos e não lhe fazer justiça. A perfeição de "Memórias de Adriano" não reside neste mesma perfeição mas sim na sua altura. E é de lá muito alto que este livro nos olha e nos interpela.
Curiosamente senti o mesmo quando também de um só fôlego li "L'Oeuvre au Noir", outro grande opus de Yourcenar e também um grande fresco histórico. Mas "Memórias de Adriano" sobe ainda mais. Atrapalha-me que a grande referência que se possa fazer sobre Youcenar seja a sua entrada para a Académie Française, a 1ª mulher em 400 anos. Claro que a piada logo cai, é que estamos a falar da tal escritora que "não escrevia como uma mulher"!
A entrevista ao Paris Review responde a isto e a outras coisas. O artigo do New Yorker é menos reverencial mas também acrecenta.
Se me restasse para ler o tempo para, não sei, meia dúzia de livros e depois morrer, este estaria lá, ou aqui, como quiserem. Também neste ler imenso a que me submeti entendi porque antes os nacos de texto eram por outro lado suficientes. Qualquer frase de "Memórias de Adriano" é certa e supina. Não há um período, um parágrafo, que não acrescente ao mesmo tempo um grão de sal e um grão de abismo ao tempo em que estás a ler aquelas palavras. Palavras sempre justas, pontuação perfeita, tempo de respiração onde se recria o pensamento de um Homem, Adriano Imperador, no fim dos seus dias. E nunca vivi outra viagem no tempo como esta. Yourcenar foi ao século II e voltou para nos contar, através dos seus olhos, como era. Lês e ouves. Vês. Sonhas. As cabeças cortadas, o pôr-do-sol romano ou grego ou sírio ou egípcio. O sangue e os ritos. Antínoo. Adriano Deus. Adriano informe e velho a entrar pelo morte dentro "de olhos abertos..."
E tudo reside neste livro. As perguntas todas e as respostas, na sua incerteza, dúvida ou ausência. E porquê? Tendo criado Yourcenar o mito ou talvez não de que este livro lhe surgiu numa epifania de longo e rápido trabalho (49-51) após uma viagem à Suiça, onde reencontrou um manuscrito seu antigo, onde pela 1ª vez tentava atacar o tema, ela mesma também explica o fascínio e todo este valor através de uma frase de Flaubert: "Não existindo já os deuses, e não existindo ainda Cristo, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem". Que ela reforça mais adiante: "Este século II interessa-me porque foi, durante muito tempo, o dos últimos homens livres. Pelo que nos diz respeito, estamos talvez já demasiado distantes desse tempo."
Tradução para o português por Maria Lamas.
"Ofereço aqui aos moralistas uma ocasião fácil de triunfar de mim. Os meus censores preparam-se para apontar na minha infelicidade as consequências de um desregramento, o resultado de um excesso: é-me tanto mais difícil contradizê-los quanto é ceero que não vejo em que consite o desregramento nem onde está o excesso. Esforço-me por reduzir o meu crime, se crime houve, a proporções justas: digo a mim mesmo que o suicídio não é raro e que é comum morrer aos vinte anos. A morte de Antínoo só é um problema e uma catástrofe para mim."
"Transportámos o morto para uma sala rigorosamente lavada que me lembrou a clínica de Sátiro; ajudei o modelador a untar o rosto antes de lhe aplicar a cera. Todas as metáforas voltaram a ter um sentido: tive aquele coração entre as minhas mãos. Quando o deixei, o corpo vazio não era mais que uma preparação de embalsamador, primeira fase de uma obra-prima, substância preciosa tratada com o sal e a geleia da mirra, que o ar e o sol nunca mais tocariam."
"Fica tudo por fazer. Os meus domínios africanos, herdados de minha sogra Matídia, devem tornar-se um modelo de exploração agrícola; os camponeses da aldeia de Borístenes, fundada na Trácia em memória de um bom cavalo, têm direito a auxílio depois de um Inverno penoso; pelo contrário, é preciso recusar subsídios aos ricos cultivadores do vale do Nilo, sempre prontos a aproveitar a solicitude do imperador. Júlio Vestino, prefeito dos estudos, manda-me o seu relatório sobre a abertura das escolas públicas de gramática; terminei agora a refundição do código comercial de Palmira: tudo ali está previsto, a taxa das prostitutas e o imposto das caravanas. Está reunido nesnte momento um congresso de médicos e de magistrados encarregados de estatuir sobre os limites extremos de uma gravidez, acabando assim com intermináveis discussões legais. Os casos de bigamia multiplicam-se nas colónias militares; faço o mais que posso para persuadir os veteranos a não fazerem mau uso das novas leis que lhes permitem o casamento e a desposar prudentemente uma só mulher de cada vez."
"Adaptar-me-ia muito mal a um mundo sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles não a contêm inteira."
"Meu caro Marco:"
Lido por retalhos, a espaços, meia dúzia de páginas aqui e ali, logo percebi encontrar-me perante algo de enorme, de quase inabarcável. Não lido por completo, era obra preferida na minha biblioteca.
Agora em três dias a leitura completa fêz-se. Desta longa carta, deste longo pensamento dirigido no fim da vida ao seu neto adoptivo Marco, futuro imperador.
Como dizer que um livro não tem defeitos e não lhe fazer justiça. A perfeição de "Memórias de Adriano" não reside neste mesma perfeição mas sim na sua altura. E é de lá muito alto que este livro nos olha e nos interpela.
Curiosamente senti o mesmo quando também de um só fôlego li "L'Oeuvre au Noir", outro grande opus de Yourcenar e também um grande fresco histórico. Mas "Memórias de Adriano" sobe ainda mais. Atrapalha-me que a grande referência que se possa fazer sobre Youcenar seja a sua entrada para a Académie Française, a 1ª mulher em 400 anos. Claro que a piada logo cai, é que estamos a falar da tal escritora que "não escrevia como uma mulher"!
A entrevista ao Paris Review responde a isto e a outras coisas. O artigo do New Yorker é menos reverencial mas também acrecenta.
Se me restasse para ler o tempo para, não sei, meia dúzia de livros e depois morrer, este estaria lá, ou aqui, como quiserem. Também neste ler imenso a que me submeti entendi porque antes os nacos de texto eram por outro lado suficientes. Qualquer frase de "Memórias de Adriano" é certa e supina. Não há um período, um parágrafo, que não acrescente ao mesmo tempo um grão de sal e um grão de abismo ao tempo em que estás a ler aquelas palavras. Palavras sempre justas, pontuação perfeita, tempo de respiração onde se recria o pensamento de um Homem, Adriano Imperador, no fim dos seus dias. E nunca vivi outra viagem no tempo como esta. Yourcenar foi ao século II e voltou para nos contar, através dos seus olhos, como era. Lês e ouves. Vês. Sonhas. As cabeças cortadas, o pôr-do-sol romano ou grego ou sírio ou egípcio. O sangue e os ritos. Antínoo. Adriano Deus. Adriano informe e velho a entrar pelo morte dentro "de olhos abertos..."
E tudo reside neste livro. As perguntas todas e as respostas, na sua incerteza, dúvida ou ausência. E porquê? Tendo criado Yourcenar o mito ou talvez não de que este livro lhe surgiu numa epifania de longo e rápido trabalho (49-51) após uma viagem à Suiça, onde reencontrou um manuscrito seu antigo, onde pela 1ª vez tentava atacar o tema, ela mesma também explica o fascínio e todo este valor através de uma frase de Flaubert: "Não existindo já os deuses, e não existindo ainda Cristo, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem". Que ela reforça mais adiante: "Este século II interessa-me porque foi, durante muito tempo, o dos últimos homens livres. Pelo que nos diz respeito, estamos talvez já demasiado distantes desse tempo."
Tradução para o português por Maria Lamas.
"Ofereço aqui aos moralistas uma ocasião fácil de triunfar de mim. Os meus censores preparam-se para apontar na minha infelicidade as consequências de um desregramento, o resultado de um excesso: é-me tanto mais difícil contradizê-los quanto é ceero que não vejo em que consite o desregramento nem onde está o excesso. Esforço-me por reduzir o meu crime, se crime houve, a proporções justas: digo a mim mesmo que o suicídio não é raro e que é comum morrer aos vinte anos. A morte de Antínoo só é um problema e uma catástrofe para mim."
"Transportámos o morto para uma sala rigorosamente lavada que me lembrou a clínica de Sátiro; ajudei o modelador a untar o rosto antes de lhe aplicar a cera. Todas as metáforas voltaram a ter um sentido: tive aquele coração entre as minhas mãos. Quando o deixei, o corpo vazio não era mais que uma preparação de embalsamador, primeira fase de uma obra-prima, substância preciosa tratada com o sal e a geleia da mirra, que o ar e o sol nunca mais tocariam."
"Fica tudo por fazer. Os meus domínios africanos, herdados de minha sogra Matídia, devem tornar-se um modelo de exploração agrícola; os camponeses da aldeia de Borístenes, fundada na Trácia em memória de um bom cavalo, têm direito a auxílio depois de um Inverno penoso; pelo contrário, é preciso recusar subsídios aos ricos cultivadores do vale do Nilo, sempre prontos a aproveitar a solicitude do imperador. Júlio Vestino, prefeito dos estudos, manda-me o seu relatório sobre a abertura das escolas públicas de gramática; terminei agora a refundição do código comercial de Palmira: tudo ali está previsto, a taxa das prostitutas e o imposto das caravanas. Está reunido nesnte momento um congresso de médicos e de magistrados encarregados de estatuir sobre os limites extremos de uma gravidez, acabando assim com intermináveis discussões legais. Os casos de bigamia multiplicam-se nas colónias militares; faço o mais que posso para persuadir os veteranos a não fazerem mau uso das novas leis que lhes permitem o casamento e a desposar prudentemente uma só mulher de cada vez."
"Adaptar-me-ia muito mal a um mundo sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles não a contêm inteira."
"Meu caro Marco:"
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