domingo, outubro 24, 2010

A Amante Holandesa.

João Rentes de Carvalho tem simplesmente um dos blogues mais límpidos e agradáveis de ler em português, que eu conheça. O "umbiguismo" típico da nossa blogosfera ali não está.
 Do seu último romance, alguém terá dito que "é Vergílio Ferreira sem a metafísica". Será isto um elogio? Sendo o primeiro livro de Rentes de Carvalho que leio, e com toda a expectativa positiva que fôra criada quer pelas boas críticas quer pela fresca leitura do seu blogue, surpreendeu-me o ambiente crepuscular deste livro. Passo a explicar.
Realmente a escrita é escorreita, saudável, acontece sem esforço. Há uma história que se conta bem e depressa. Não se perde demasiado tempo, as coisas acontecem e todo o trabalho está bem feito. Explico mais.
É Trás-os-Montes. Há um professor e um amigo seu que é pastor. O pastor foi emigrante na Holanda. O professor, preso num casamento onde não se enquadra, tem um segredo que vai muito lentamente sendo desvendado, capítulo a capítulo. O pastor sonha e suspira por um antigo namoro - e vida de casado, ao que parece - no país das tulipas. Lá terá ficado uma filha.
Rentes de Carvalho viveu muitos anos fora de Portugal, os mais na Holanda. Só lhe fez bem. Demasiado Portugal faz mal às letras, Pessoa a excepção e poucas mais. O interior é muito bem retratado, e não tanto de uma forma descritiva, mas sobretudo em actos, em como as coisas acontecem e deixam acontecer, naquele ritmo de aldeia que é aqui tão bem marcado, com histerismos de epicrise violenta a surgirem em espaços de tempo onde nunca acontece nada, nem antes nem depois, as portas fechadas, os olhos também e as mãos. Este escrever não é frequente em português.
A reviravolta dá-se quando a filha do emigrante, entretanto morto, aparece. O crepúsculo de que falei, ou melhor, a antecipação da tragédia que virá, e do tremer do chão em que os pés se apoiam, ou das verdades que damos como assentadas, vai acontecer. Um segredo revela-se, como uma chaga que não sabe fechar. E nós, leitores, ficamos sem saber o que fazer - o livro acaba.


"Os castanheiros são uns dez ou doze e cresceram juntos, mas tortos devido às fragas que os sujeitam. Agora, mais do que centenários, as suas copas fazem sobre elas um dossel de sombra benfazeja, deixando que se cubram de musgo.
Sento-me, a descansar do que já caminhei. Bebo um gole de água. O Gato e o seu rebanho andam ainda tão longe que o revérbero do ar os torna miragem, alternadamente a surgir e a desaparecer.
Sem razão que conte e tal uma névoa quie se dissipa, a vagueza dos meus pensamentos dá lugar às recordações da noite. Em imagens tão nítidas e frias como provas de corpo de delito. Momentos ruins.
No tribunal em que me ponho faço simultaneamente de réu e juiz. Defendo-me e condeno-me. Ora encontro desculpas, ora acuso sem piedade. Puro jogo que irá terminar como sempre termina, em corrida para a fantasia.
Se pudesse começar de novo! E encontrasse então amor, paz...
- Paz? Quem tem paz? - pergunta  o Gato, enquanto tira duas maçãs do surrão e me dá uma. Abrimos as facas e pomo-nos a descascá-las."

"- Bem, nós andámos a averiguar isso, mas as coisas levam tempo. Oiça, se ela lhe escrever mostre-nos a carta. Para não termos de andar à procura no correio. E se por acaso lhe chegar qualquer coisa aos ouvidos, se lhe voltarem a oferecer russas ou brasileirinhas, lembre-se da gente.
O colega continuava em pé e, finalmente, também ele se levantou, com um ar absorto, a procurar qualquer coisa no bolso do casaco. Depois estendeu-me o cartão e esperou até o colega fazer o mesmo.
- Tem aí tudo. Os nossos nomes, os números das extensões na Judiciária, os telemóveis.
Curvou-se a arrepanhar as fotografia e meteu-as no envelope, enquanto o colega se encaminhava para o corredor. Eu fui atrás de ambos, abri-lhes a porta e eles, sem cortesias nem despedidas, voltaram-me as costas e desceram as escadas para a rua."

0 Comentário(s):

Enviar um comentário