domingo, janeiro 02, 2011

História Do Cerco De Lisboa.

Há um Saramago a sério e um Saramago a brincar. Este último predominou nos últimos livros, por exemplo "A Viagem Do Elefante", de que já falámos.
"História Do Cerco De Lisboa", de 1989, equilibra sabiamente os dois, e aqui reside o seu maior triunfo.
Uma vez mais o livro parte de uma premissa que cria uma originalidade: e se os cruzados não tivessem ajudado D.Afonso Henriques a conquistar Lisboa e tivessem decidido pôr-se na alheta? Este alterar da conhecida história nasce na cabeça de um revisor, cansado homem, mediano de vida e de idade, e que resolve, ao rever um livro homónimo ao título de que falamos, "rever" de uma forma mais drástica, pondo um "não" onde está um "sim".
A melopeia saramaguiana vai a partir daqui contar não uma mas três histórias: a do revisor e um improvável amor que lhe aparece "porque ele não se enganou na revisão que fez"; a história medieval da Lisboa que vai mesmo deixar de ser moura, apesar da debandada "cruzadística"; e ainda uma outra paralela história de amor que coincide no tempo com a tomada de Lisboa e, no encadear dos acontecimentos, com o amor de hoje. Saramago gosta dos seus personagens, enroupa-os bem. Não admira que os seus livros facilmente se prestem a filmes, óperas, etc., se daqui depois nasce boa coisa é outra hx....
Este livro merecia um bom filme, e é um bom livro. Para variar, há o elogio de uma diferença que é um apenas um pequeno achado. Não é uma jangada de pedra que acontece, não pára o mundo de morrer, não ficamos todos cegos. É apenas a transmutação de três letras noutras três, nenhuma delas coincidindo. Sim passa a não. Lemos um Saramago tranquilo e discretamente amoroso, apenas lateralmente encrespando o fluir da história.
Não sei quem me recomendou este livro, há décadas terá sido. Era o único Saramago de que gostava, porque "era uma história de amor". Descontando o "ranço" do argumento, e a esta distância e com a ignorância que confesso de onde partiu a recomendação, aqui agradeço. Agora que nos morreu o Nobel, e que o impenetrável Lobo Antunes já passou para os "que-não-serão-Nobel-nunca-na-vida" (assim era Vargas Llosa...), Portugal decidiu que tem um novo candidado, Gonçalo M. Tavares. Numa consulta feita a 31/12 e onde me ofereceram o novo-futuro-Nobel, eu falei de "Jerusalém", e da escrita de GMT no geral como tendo um "défice-de-coração". Nada disto se passa com este livro de Saramago. Recomendo.


"Saiu D.Afonso Henriques da tenda, trazendo de conselheiros D.Pedro Pitões e D.João Peculiar, e foi este, após consultar com o rei, quem tomou a palavra para dar as boas-vindas aos emissários, em latim as deu, claro está, que não ficam piores que as outras, e afirmar quanto aprouveria ao rei ouvir a resposta que lhe traziam, cuja não duvidava fosse a mais proveitosa à gloria de Deus Nosso Senhor. A fórmula é boa, porque não podendo nós, obviamente, saber que é o que a Deus mais convém, deixamos ao seu critério a responsabilidade da escolha, competindo-nos tão-somente ser humildes se ela vier contra os nossos interesses e não exagerar as expressões do contentamento se, pelo contrário, vem servir maravilhosamente as nossas conveniências. A eventualidade de que a Deus sejam igualmente indiferntes o sim e o não, o bem e o mal, não pode entrar em cabeças como foram feitas as nossas, porque, enfim, Deus sempre há-de servir para alguma coisa."


"Raimundo, Diga, Logo que eu possa sair, irei visitá-lo, mas, Estou à sua espera, Essas palavras são boas, Não percebo, Quando eu já aí estiver, deverá continuar à minha espera, como eu continuarei à sua, por enquanto ainda não sabemos quando chegaremos, Esperarei, Até breve, Raimundo, Não se demore, Que vai fazer quando desligarmos, Acampar em frente da Porta de Ferro e rezar à Virgem Santíssima para que os mouros não tenham a ideia de nos atacar pela calada da noite, Está com medo, Tremo de pavor, Tanto, Antes de vir para esta guerra, eu era apenas um revisor sem outros maiores cuidados que traçar correctamente um deleatur para explicá-lo ao autor, Parece que há interferências na linha, O que se ouve são os gritos dos mouros ameaçando lá das ameias, Tenha cuidado consigo, Não vim de tão longe para morrer diante dos muros de Lisboa."

1 Comentário(s):

Blogger Tiago M. Franco disse...

Gostei muito desde livro.
Para ser sincero, os outros dois autores que fala, GMT E ALA, são os dois autores vivos que mais gosto.
Deixo aqui o link com a sugestão de leitura que fiz da História do Cerco de Lisboa:
http://sugestaodeleitura.blogspot.pt/2012/11/historia-do-cerco-de-lisboa-jose.html

9:16 da tarde  

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