domingo, junho 05, 2011

Filhos Sem Filhos.

Enrique Vila-Matas publicou esta colectânea de textos em 1993. O título é em si um programa. Vila-Matas é um discípulo confesso de Kafka. A dedicatória/texto que enceta as hostilidades reza assim:

"A Alemanha declarou Guerra à Rússia. À tarde fui nadar."

Esta pérola pertence à entrada de 2 de Agosto de 1914 de Kafka.
Ser filho e não ter filhos, eis um programa à Vila-Matas: alguém que filho seja e se negue a cumprir o plano que permitiu a sua própria existência, a... reprodução da espécie. Vila-Matas é isto: alguém que não pediu para nascer e que com alguma frequência não gosta do que vê. E enquanto isto escreve.

Os quinze textos situam-se em momentos e terras diferentes de Espanha e o conjunto pretende demonstrar a um tempo um personagem e a sua angústia e a Espanha do ano em questão. Com maior ou menor suavidade são portanto enunciados quinze pesadelos.

O projecto de Vila-Matas é-nos conhecido e, aliás, vemo-lo como meritório. E a maior parte dos textos são muito bons.


"Reconheci perfeitamente o índio silencioso. Tina-o visto a trabalhar naquela casa da Calle Palacio, no centro de Cuzco. Agora carregava nos arredores de Cáceres com grande dignidade os pertences do meu pai e os meus. As calças, muito curtas, só o tapavam até aos joelhos.  Ia descalço, completamente empapado de chuva. Era espigado, mas não alto.  Sob a aba do seu chapéu pude observar o seu nariz aquilino, os seus olhos fundos, os tendões salientes do pescoço. Não havia dúvida nenhuma. Era ele.
- Mas o que faz o índio aqui? - perguntei aterrado ao meu pai.
Então acordei.
- De que índio fala? - perguntou a minha mãe.
Eu tinha a testa apoiada, praticamente mergulhada, nos meus apontamentos. Transformara-me durnate uns minutos no estudante caído por excelência. Dispus-me a retomar o estudo. Os meus pais retiraram-se para dormir. Estudei toda a noite. Agora já não chove, a trovoada afastou-se, amanhece. Eu continuo diante dos meus apontamentos. Não deixarei esta mesa até terminar completamente os meus estudos. Não os terminarei nunca."


"Lembro-me que de todas as crianças da pandilha do bairro eu era a única que tinha televisor e que, nesse dia, saí disparado do salão familiar e, descendo as escadas quatro a quatro, cheguei à rua e fui ao bar onde jogávamos matraquilhos e gritei a todos que tinham morto John Kennedy, gritei várias vezes muito exaltado, mataram Kenndey, mataram Kennedy, e lembro-me que o chefe da pandilha, impassível como sempre, me disse: "E depois?"


O texto mais forte para mim, talvez porque seja uma boa aproximação de Vila-Matas ao lirismo, é o "Olhando o Mar e Outros Temas"


"Há canções muito breves que completam as primeiras faces dos longplays. Eram as que mais agradavam à nossa mãe. Sei-o porque, naquela tarde de piquenique e zarzuela, a ouvi dizer:
- Gosto das canções breves e ligeiras como a própria vida. Só essas canções dizem a verdade."


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