sábado, fevereiro 26, 2011

Contos de Clarice Lispector e O Rastro do Jaguar

O escrever brasileiro é o mais próximo que temos ao português, passe o óbvio. E, porém, obriga a prática corrente, hábito establecido. Eles, os brasileiros, escrevem diferente de nós, os portugueses. Bastante.
Nestes últimos meses frequentei dois livros escritos por dois autores brasileiros: “O Rastro do Jaguar”, de Murilo Carvalho, e “Contos”, de Clarice Lispector.

Vou começar pelo último volume. Espicaçado pelo frisson que a biografia da brasileira de origem judaico-ucraniana criou nos US of A, e, por inerência, em Portugal, decidi, antes de ler a biografia, ler Clarice Lispector. É esta mulher um dos maiores vulcões da prosa em língua portuguesa do século XX. Este volume colige “todos os contos de Clarice Lispector, à excepção dos que fazem parte do livro “Laços de Família””, que a mesma editora, a Relógio d’Água, já tinha editado antes. E nota-se bastante que os “sub-volumes” exigem graus de atenção e de disponibilidade diferentes ao serem escritos sob um prisma diferente, com objectivos distintos, para criar um tipo de tensão ou de disposição diferente no leitor. Contos há onde a história é apenas uma volta do destino, uma coincidência infeliz. Outros contam uma vida, ou meia dúzia. Outros contos são exercícios duros de linguagem, de geometria complicada e difícil degustação. Nunca o superlativo da coisa está ausente. Clarice Lispector provocou em mim um espanto enorme, algum que outro cansaço, uma que outra insónia, pasmo frequente. Enfim, ainda não li este livro até ao fim. Vouacabar de lê-lo, sim senhor, mas mais daqui a um bocado. É mesmo uma enorme escritora. Um bicho maiúsculo, sobrenatural, assustador. Ó pá, a minha vida não está fácil, e portanto até nem está para muito destas merdas... Preciso recuperar o fôlego.

Já agora um site que "oferece" contos de Clarice Lispector.

 
“FELICIDADE CLANDESTINA
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”



Murilo Carvalho é outra história. O seu livro, presente de Natal, foi prémio Leya 2008, e tem recomendações na contra-capa de pessoas tão insuspeitas como Luis Represas, Luis Figo e Judite de Sousa. No outro extremo destas recomendações Manuel Alegre e o recentemente falecido Pepetela.

Primeiro romance de um homem que tem sido, sobretudo mas não só, jornalista, traça a história de um homem especial, Pierre de Saint’Hilaire, e a busca por este das suas origens num Brasil em profunda transformação – século XIX – tendo como pano de fundo uma das guerras mais duras e mais ignoradas do século em questão, a que opôs a aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai, por um lado, e o estado do Paraguai, por outro, este então um país bem mais florescente do que hoje. O Paraguai era, e ainda é hoje, um país muito marcado pela herança indígena guarani. Pierre, criança guarani levada para França muito jovem, volta à procura de uma terra indígena ideal, de um paraíso na terra. Do seu sucesso ou insucesso trata o livro. Que pretende ser aquela coisa do grande fresco sobre uma época "em mudança" (e não foi o séc. XIX o século por definição das grandes mudanças?) onde as últimas hipóteses de convivência do índio com o colonizador desaparecem – o Paraguai toda uma metáfora sobre – e onde começa a escassear a terra e o mais fraco ou é absorvido ou se extingue. O Brasil é aqui o que em Portugal se desconhece ser: um Império enorme, não sendo puro capricho o de D.Pedro II assim se chamar. O Brasil tinha e tem o dobro da dimensão da Europa Continental.
A Guerra do Paraguai matou 1/3 da população deste país e a maior parte da sua população masculina, guarani na sua maioria. Tudo porque a loucura de um ditador – esclarecido? – esbarrou contra a obstinação e o poder do Imperador brasileiro e a necessidade da Argentina se unir e definir como país, o Uruguai um anexo nestes considerandos. E Pierre?



“O pôr-do-sol daquela tarde em que acampamos no pátio das ruínas de São Miguel das Missões jamais sairá de minha memória. Havíamos chegado tarde, quando as sombras dos pinheiros já se recortavam contra o céu azul, levemente esfumaçado pelas queimadas distantes. Não havia ninguém ao redor das ruínas, e mesmo alguns casebres que encontramos na subida para a colina estavam vazios. Arriamos nossas coisas sob um grande umbu e, enquanto Benedito e Mateus faziam uma fogueira para a noite, Pierre e eu caminhamos até as ruínas. Havia sombras e luz envolvendo as paredes de pedra vermelha. Cinco arcos romanos abriam um peristilo profundo na entrada da igreja missioneira; as ruínas haviam sido tomadas pelo mato; a luz amarela do entardecer tornava macios os contornos de pedra e dava relevo de veludo escuro aos lavrados dos capitéis de falsas colunas. Havia um ar solene na velha igreja, sem telhado, com cactos e samambaias vicejando nas paredes. Apenas uma torre permanecia mais ou menos intacta, justamente na direção do poente. Em torno de nós, mais ruínas, pedaços de paredes formando quadrados e relembrando talvez oficinas ou salas de aula. Tudo morto, acabado; passado. Era o que restava da tentativa dos jesuítas de construir ali uma híbrida nação guarani cristianizada.”



Pierre, que tarde descobriu ser afinal um índio transplantado para o meio militar e científico-burguês europeu, vem à procura de uma origem feita ideal. Será que a vai encontrar?
A escrita de Murilo de Carvalho é simples e reconhecível. Será o equivalente brasileiro a um mainstream de escrita que cá reside meio quilómetro acima da Margarida Rebelo Pinto ou do Miguel Sousa Tavares. Porém, concedo que não tenho o hábito de ler brasileiro, pelo que se calhar o padrão bronze no Brasil será outro do que penso. E temo estar a ser injusto para o escritor. A verdade é que li o livro até ao fim sem esforço e porque a história está bem contada, bem aberta, bem distribuída, bem fechada. Uma boa história e bem contada não é habitual em português. O ângulo usado, o de um participante que funciona como testemunha privilegiada, oferecendo ao mesmo tempo como linha de diversão o luto pela sua amada, conhecida ao mesmo tempo que a guerra estava ali, é perfeito. Com o adicional de, acontecendo-lhe a depressão em Congonhas do Campo abrir-se um outro cenário para reflexão e comentário, qual coro grego de todo este drama: os profetas esculpidos pelo Aleijadinho, o famoso escultor brasileiro do barroco. Cada profeta é usado a preceito para comentar os passos desta história, tendo em atenção que a figura de Pierre não deixa de ter as suas nuances “crísticas”, a sua aura de “Paixão”. Só que o autor elude e muito bem o fim possível: não há uma cruz, como também não há ressurreição.

 
“As cartas que retiro do baú são tantas que cobrem, em pequenos montes, toda a grande mesa da sala de jantar. Não pretendo lê-las novamente, nem classificá-las de qualquer forma, apenas desejava tocar nelas, senti-las, olhar as letras esmaecidas nos envelopes amarelos. Estão aqui as memórias de muitas vidas: minha, de Francisca, de Pierre, de Firmiano, e até de Mateus, Benedito, Jeanne e de outros amigos que o tempo tornou cinzas ao vento.Estão aqui, amarradas por um cordão, fotografias de outros tempos. Paris, Rio de Janeiro, Digne – mas especialmente as fotografias de João Kuhn, que morreu em Porto Alegre, muito antes de poder viajar para a Europa, onde seus duros retratos da guerra haviam impressionado tanto. Desamarrei-as e olho-as lentamente: os mortos, os nus, os feridos; os heróis, os prisioneiros; os homens em ordem de batalha: tudo tão antigo, tão velho, tão passado como as paredes deste solar em Congonhas do Campo. Aos poucos fui guardando-as de volta ao baú – as cartas, as fotografias. Não mais me sinto tão solitário depois da chegada de Mateus e Benedito; de alguma forma, constituímos uma nova família de velhos. Cirilo, tão antigo como nós, está entusiasmado: chama-nos de sociedade dos espíritos, como se fôssemos fantasmas”

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