sábado, junho 11, 2011

Memento Mori

Muriel Spark escreveu este romance para nos avisar como pode ser a velhice. Nasceu escocesa e, avisadamente, faleceu em Itália. Escreveu contos imaculados mas também, peças de teatro, poesia, biografias e, em 1959, publicou este romance.
No princípio era uma cambada de velhos, gente que vagamente ou não tinham sido importantes na cena intelectual inglesa, agora não - velhos. Um deles recebe um telefonema: "Lembra-te que vais morrer!" Este telefonema, cuja autoria ficará por esclarecer dissemina-se ao mesmo tempo que as frágeis e empestadas relações entre os vários personagens vão-se desmoronando. Idem o resto das gentes que os rodeiam, num desgarrado jogo de interesses onde o acaso e - será mesmo? - o destino anunciado por telefone jogam o seu papel, agudizando as angulosidades ou as maldades, se preferirmos de cada um que recebe "a chamada", e depois funcionando em ricochete.
Vão acontecendo também as mortes desta gentes empeçonhadas, pois o que pode a um velho acontecer senão... a morte? Humor negro perfeitamente decantado para que a mensagem final não seja bem visível a não ser no fim: cuidado como envelheces. Lê-se num jacto até ao fim, o gosto amargo não dispensando um DVD de comédia logo depois para amenizar...



"A razão porque a família de Lisa Brooke organizara a reunião pós-funerária num salão de chá, e não na pequena casa de tijolo, entre a habitação e o estúdio, em Hampstead, onde morara Lisa Brooke, era a seguinte: Mrs Pettigrew, a governanta de Lisa, continuava ainda a habitá-la. A família descobrira, entretanto, que Lisa legar a maior parte da sua fortuna a Mrs Pettigrew, a qual era, de havia longa data, tida por um elemento de desgraça na vida de Lisa. Tinham-se aferrado a essa ideia como acontece a quem obscuramente julga ter intuído qualquer coisa de sensato, embora as pistas que o conduz às suas conclusões sejam falsas. Mas fosse qual fosse o conteúdo das suspeitas que mantinham acerca da influência de Mrs Pettigrew sobre Lisa, tencionavam, se pudessem, contestar o testamento da sua parente, sustentando que, na altura em que o fizera, Lisa não se encontrava no seu perfeito juízo, o que teria sido de molde a permitir a Mrs Pettigrew influenciá-la indevidamente."



"Charmian acordou às quatro horas e pressentiu que a casa estava vazia. Mrs Anthony passara a deixar o serviço às duas da tarde. Mas Godfrey e Mrs Pettigrew deviam ter também saído. Charmian deixou-se ficar à escuta um pouco mais, tentando confirmar a impressão de estar só naquela casa. Não ouvia um som. Levantou-se lentamente, arranjou-se sózinha e, apoiando-se agarrada à balaustrada do patamar e depois ao corrimão, desceu as escadas. Estava no primeiro patamar intermédio quando o telefone tocou. Não se apressou, mas alcançou-o enquanto ainda tocava.
- É Mrs Colston quem fala?
- Sim sou eu própria.
- Charmian Piper, não é verdade?
- Sim. Você é jornalista?
- Lembre-se - disse a voz - que vai morrer.
- Oh, quanto a isso - disse ela - , há mais de trinta anos que de vez em quando tenho pensado no asunto. A minha memória trai-me a respeito de algumas coisas. Tenho oitenta e seis anos feitos. Mas, seja como for, não me esqueço da minha morte, venha quando ela vier.
- Fico encantado ao ouvi-la falar assim - disse o homem. - Até outro dia.
- Até outro dia - disse ela. -  De que jornal é você?"



"- A Avó Green morreu - disse Miss Taylor.
- Ah... eu vi, de facto, outra pessoa na cama dela. Mas de que morreu ela?
- Uma arteriosclerose. Acabou por lhe atacar o coração.
- Sim, há quem diga que temos a idade que têm as nossas artérias. Teve uma boa morte?
- Não sei.
- Estavas a dormir nessa altura? - perguntou Alec.
- Não, estava acordada. Havia uma certa agitação aqui.
- Mas não teve um fim tranquilo?
- Não. Para nós não foi tranquilo.
- Gosto sempre de saber - disse ele - se uma pessoa teve uma boa ou má morte. Tenta saber.
Ela, por um momento, odiou-o do fundo do coração.
- Uma boa morte - respondeu-lhe - não depende da dignidade da atitude exterior, mas das disposições da alma.
Também ele, subitamente, a odiou.
- Demonstra-mo - disse Alec.
- Refuta-o - disse ela, cansada.
- Receio - disse ele - ter-me esquecido de te perguntar como tens passado. Tens passado bem, Jean?
- Estou um bocadinho mais forte, mas a catarata incomoda-me muito.
- A Charmian sempre acabou por ir para aquela casa de saúde do Surrey. Não gostavas de lá ir ter com ela?
- Então, o Godfrey focou sózinho com Mrs Pettigrew.
- Gostavas, com certeza, de estar com a Charmian.
- Não - disse ela."




Brilhante. Ed. Rel. d'Água.
Texto sobre do Guardian.

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