sábado, julho 02, 2011

Com os Holandeses

Sinceramente, não estava à espera deste livro. Rentes de Carvalho está progressivamente a tornar-se mais conhecido em Portugal. Como escritor cujo reconhecimento aconteceu de fora para dentro, interessa saber onde foi esse "fora": o seu "fora" foi a Holanda, onde esteve (ou ainda parcialmente está) radicado bastantes anos.
Neste livro fala sobre os holandeses. E não lhes poupa críticas. Que nem são dissimuladas, nem com grandes ressalvas. Sejamos claros, este livro é o retrato feito por um homem da "Europa do Sul" de todas as chatérrimas peculiaridades que levaram ao sucesso a Holanda, os Holandeses e, se calhar, extendendo o raciocínio, a "Europa do Norte". Aquela que nos empresta o dinheiro. Portanto, a leitura deste livro ofereceu-me mais do que um amargo de boca. Pergunto-me como aguentou Rentes de Carvalho todos os seus anos holandeses. Ele semi-explica: razões sentimentais e profissionais. Fico angustiado só de pensar que a chave do nosso sucesso era/seria/será transformar-mo-nos em algo parecido a. Este livro atrapalha.
A chave do enigma pode estar em que este mesmo livro foi um sucesso de vendas... na Holanda! Esclarecidos? Ou o mistério adensa-se ainda mais? Talvez esta entrevista ajude. E o facto de o libvro não se intitular "Sobre" mas "Com".
Publicado em 1972, o livro sofre de um ou outro anacronismo. Mas são poucos e inconsequentes...




"Quem, como eu, em Amsterdam, frequenta os eléctricos, os autocarros, os comboios para a praia de Zandvoort, e de vez em quando se encontra cercado de multidão, há-de ter-se dado conta de que o holandês e, menos previsivelmente ainda, a holandesa, parecem utilizar o corpo com o mesmo fito com que os guerreiros antigos se serviam das armas de arremesso ou dos aríetes.
Quem não está habituado envergonha-se, sente-se constrangido ao ver-se em risco de asfixia por seios matronais, ao ser empurrado por traseiros de todos os tamanhos e consistências, de sentir contra a sua outras anatomias que, empurrando, apertando, se incrustam e nela se moldam com uma insistência que noutras terras seria tida por viciosa.
Só que o holandês e a holandesa não pensam nisso. Toda aquela febrilidade de empurrar, encostar, amassar, tem apenas por fim chegar primeiro, arranjar lugar, não perder a vez, não perder a ocasião.
Os latinos arribados de fresco, porém - alguns mo têm confessado e eu compreendo-os- quando se dão conta de tanta ingenuidade, encontram nos transportes públicos prazeres e oportunidades que os jejuns seculares tornam ainda mais picantes.
Também aí o holandês olha de alto. As suas preocupações são outras. Aliás o jogo sexual, mesmo o vício, pode ele hoje comprá-lo na loja, acompanhado de instruções de uso, quase garantido.
Voltando aos empurrões. Eles fazem parte das maneiras ou, para dizer com maior precisão, da ausência de maneiras, tais como estas se concebem fora da Holanda. Porque as maneiras aqui, salvo raras excepções, parecem ter uma predilecção para ser ao contrário do que seria de esperar."





"Desde que a conheço, a família holandesa tem sido para mim uma fonte inesgotável de observação e em certa medida de perplexidade. Não cabe aqui analisar o que a família realmente é, aquilo que as instituições pretendem que ela é, que ela poderia ser. Se noutras partes é semelhante ou diferente, com os mesmos problemas ou com outros, também não é ponto que agora interesse.
Por uma questão de facilidade tomarei o que me parece corresponder à família holandesa típica, composta de pai, mãe, dois ou três filhos, e a eles acrescento os avós e um certo número de tias e tios, embora estes parentes, ligados pelo sangue e separados pelo resto, sejam supérfluos no retrato.
O que logo impressiona no grupo mais restrito, o dos pais e filhos, é que a força predominante parece ser a do egoísmo, o qual não se traduz apenas pela brusquidão das maneiras, mas por uma espécie de curto-circuito das comunicações entre os familiares, e uma falta de carinho e ternura, como se esses fossem sentimentos vergonhosos, aliada a um laisser-aller que à primeira vista pode parecer respeito pela liberdade de cada um, mas igualmente pode ser interpretado como suprema indiferença dos pais entre si, dos pais para os filhos e vice-versa.
Querer diminuí-los porque são menos expansivos, seria uma estupidez maldosa. E no amor, como na dedicação, o holandês é capaz de aceitar estoicamente consequências de que nós, mais ligeiros e superficiais, fugiriamos a sete pés. Mas em geral, quanta frieza também! Quando vejo uma mulher grávida nunca posso deixar de perguntar-me se o bebé não foi programado para nascer em Dezembro, de modo a que os seus progenitores aproveitem a redução fiscal correpondente a um ano inteiro."

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