sábado, julho 02, 2011

Os que se afastam.

Já há muitos anos que não lia Patricia Highsmith (PH). Lê-la requeria, do que me lembro, estofo, coragem, estômago. Os Ripley's, e toda uma série de contos verdadeiramente assassinos do carácter de todo e qualquer elemento da espécie humana que por lá passeasse fascinaram-me até à saturação. Este livro discreto, de 1967, relativamente curto, e péssimamente revisto - atenção Livros do Brasil! - não é dos mais exigentes nesse sentido, pelo contrário. Há um suicídio de uma rapariga, nem se percebendo bem porquê. E há, em Veneza, o ódio de um pai ao jovem marido que falhou o evitar do mesmo suicídio, um ódio terminal a deambular pelas ruas e ruelas, pelos vaporetos e pelas gôndolas. O amor de um pai não concebe uma morte assim de uma filha. Os porquês são esboçados, bem como todos os personagens. Ray é o jovem marido, Coleman o pai inconsolável. Figuras que deambulam pela cidade-palafita como pelas emoções, hesitações e falhas de carácter que vão tendo e exibindo. E, às vezes, as coisas acontecem. Esta frase, "as coisas acontecem", é talvez a definição das ficções de PH: e o que acontece raramente é bom.
Curioso que nesta novela aqui o fim não seja completamente negativo, sendo aliás o texto de PH mais upbeat que eu já li, e deixe uma abertura, uma respiração possível fornecida pelos venezianos que foram ajudando os nossos dois inimigos a sobreviver um ao outro. Talvez PH tenha passado bons tempos em Veneza e daí a excepção. A última palavra do livro é "amizade".
Enfim, como sabê-lo, ao despedir-mo-nos de uma cidade onde, Elizabetta, a fugaz presença romântica, pergunta: "um sítio bonito?", como se nunca tivesse visto um nem soubesse em que consiste. Enfim, como pode uma cidade a afundar-se transmitir certezas a quem quer que seja? A sobrevivência de Ray e Coleman a este livro não lhes serve de garantia, não lhes fornece um futuro obrigatoriamente agradável... ou não fosse PH quem escreve - "we know better how things happen" - embora a amizade, mesmo - ou sobretudo - a de circunstância - possa evitar ou atrasar coisas maiores, coisas mesmo más...





"- O que é que o senhor lhe disse? - perguntou Zordyi?.
- Disse: "O que está feito, está feito. O que podemos nós fazer?"
- Não estava zangado com ele? Gosta dele?
- Não é mau rapaz. Bastante decente. De contrário, não teria permitido que a minha filha casasse com ele. Na minha opinião, é um fraco. Peggy precisava de um pulso firme.
- Tentou animá-lo nessa noite?
Coleman gostaria ter-lhe sido possível dizer que sim, mas calculou que o homem iria falar com os Smith-Peters.
- Disse-lhe: "Aconteceu. Foi um choque para ambos." Qualquer coisa nesse género.
- Havia alguma razão especial para ele querer falar consigo naquela noite? A Polícia disse que os outros já se tinha ido embora do restaurante. Ficaram só vocês os dois.
- Disse-me que me queria explicar qualquer coisa. Depreendi que seria o ter feito tudo o que podia pela Peggy, tentara fazer com que ela fosse a um psiquiatra e ela recusara-se, e Ray queria que eu soubesse  que a culpa não tinha sido sua.
Coleman sentiu que Zordyi não estava nada interessado na razão do suicídio de Peggy. O que ele dissera encaixava muito bem, pensou Coleman, era o género de coisas que qualquer jovem poderia ter dito antes de se suicidar.
- Durante quanto tempo conversaram?
- Cerca de quinze minutos.
Zordyi não estava a tomar nota de nada.
- Fui ver as coisas dele hoje, à Pensione Seguso. A mala. Há dois buracos de bala - e acrescentou sorrindo: - a rapariga que tinha feito a mala não tinha reparado nos buracos. Também os encontrei numa camisa que ainda tinha algumas manchas de sangue. Ele tentou lavá-la, talvez apenas um dia antes.
Coleman ouvia atentamente.
- Ele não lhe disse nada acerca de ter sido atingido num braço?
- Absolutamente nada."



"A conversa não decorreu da maneira mais fácil, apesar de lubrificada pelo óleo da amizade. Luigi tinha-lhe salvo a vida uma vez. E estava a ajudar a preservá-la agora, através dos seus amigos. Ray arranjou maneira de os fazer perceber o que sentia, para deleite do signor Ciardi e de Giustina, que eram uns sentimentais, mas não deviam ter compreendido a primeira parte, sobre Luigi lhe ter salvo a vida, pensando que queria dizer que era por lhe ter arranjado um lugar onde ficar.
O signor Ciardi mandou Giustina ir buscar vinho. Todos fumaram dos cigarros americanos de Ray, menos Giustina. O ambiente do quarto era alegre. Luigi tirou duas belas laranjas de dentro da camisa e pô-las na mesinha-de-cabeceira de Ray. Perguntou a Ray em que rua tinha ele caído e lamentou a má iluminação de algumas ruas. A festa podia ter continuado por mais tempo, mas o médico tinha dito que o signor Weelson tinha que descansar, de maneira que sairam todos do quarto. Giustina trouxe o jantar a Ray - fettucini e salada, acompanhados por um copo de fortificante vinho do signor Ciardi. Ray reuniu energias para o dia seguinte.
Tinha pedido a Giustina que lhe comprasse um Gazzettino, que lhe puseram na bandeja do pequeno-almoço. Como já estava preparado, Ray não ficou muito surpreendido - surpreendeu-o, sim, o grande impacto de ver confirmado aquilo de que estava à espera - ao ver a fotografia do passaporte de Coleman na primeira página. Edward Venner Coleman, de cinquenta e dois anos, pintor americano e residindo em Roma, era dado como desaparecido desde a noite de 23 de Novembro."






"Those who walk away" é o nome original da novela. E é o que alternadamente fazem Ray e Coleman. Mas Coleman não aproveita esse retiro que o anonimato de te darem como desaparecido pode dar, uma pausa como um motor que estando em falta pára e um bom bocado depois volta a funcionar, mas bem.
Ray vence Coleman porque soube "afastar-se".

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