segunda-feira, agosto 15, 2011

Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Machado de Assis foi o equivalente brasileiro a Eça de Queirós, simplificando os raciocínios. Assim sendo, foi um grande escritor, artista da língua portuguesa como poucos. Que pouco conhecido é hoje por aqui no rectângulo.
O romance "Memórias Póstumas...", relativamente curto no paginar que não no profundo da sua ironia, conta de trás para a frente para trás a história de um moço brasileiro de boa família e seu percurso, amores, desamores, apegos, desapegos. É na prática um pequeno grande romance, anticlimático ao fim porque já tinha afinal terminado antes de começar, divertidíssimo e de bom escorrer, excepto quando, aqui e ali, o século XIX soa a conhecido, e o barrete cai do alto e nos tapa a visão, há que estar atento.
Leitura obrigatória!




"CAPÍTULO XXXV / O CAMINHO DE DAMASCO
Ora aconteceu que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escritura (At. IX 7): “Levanta-te, e entra na cidade”. Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da minha descida, não há duvidar que ela o achou e mo disse. Foi na varanda, na tarde de uma segunda-feira, ao anunciar-lhe que na seguinte manhã viria para baixo. – Adeus – suspirou ela estendendo-me a mão com simplicidade -; faz bem. – E como eu nada dissesse, continuou:  - Faz bem em fugir ao ridículo de casar comigo. – Ia dizer-lhe que não; ela retirou-se lentamente, engolindo as lágrimas. Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por todos os santos do céu que eu era obrigado a descer, mas que não deixava de lhe querer e muito, tudo hipérboles frias, que ela escutou sem dizer nada.
- Acredita-me? – perguntei eu no fim.
- Não, e digo-lhe que faz bem.
Quis retê-la, mas o olhar que me lançou não foi já de súplica, senão de império. Desci da Tijuca, na manhã seguinte, um pouco amargurado, outro pouco satisfeito. Vinha dizendo a mim mesmo que era justo obedecer a meu pai, que era conveniente abraçar a carreira política… que a constituição… que a minha noiva… que o meu cavalo…"


"CAPÍTULO CI / A REVOLUÇÃO DÁLMATA
Foi Virgília quem me deu notícia da viravolta política do marido, certa manhã de Outubro, entre 11 e meio-dia; falou-me de reuniões, de conversas, de um discurso…
- De maneira que desta vez você fica baronesa – interrompi eu.
Ela derreou os cantos da boca, e moveu a cabeça a um e outro lado; mas esse gesto de indiferença era desmentido por alguma coisa menos definível, menos clara, uma expressão de gosto e de esperança. Não sei por que, imaginei que a carta imperial da nomeação podia atraí-la à virtude, não digo pela virtude em si mesma, mas por gratidão ao marido. Que ela amava cordialmente a nobreza. Um dos maiores desgostos de nossa vida foi o o aparecimento de certo pelintra de legação – da legação da Dalmácia, suponhamos -, o Conde B. V., que a namorou durante três meses. Esse homem, vero fidalgo de raça, transtornara um pouco a cabeça de Virgília, que, além do mais, possuia a vocação diplomática. Não chego a alcançar o que seria de mim, se não rebentasse na Dalmácia uma revolução, que derrocou o governo e purificou as embaixadas. Foi sangrenta a revolução, dolorosa, formidável; os jornais, a cada navio que chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam o sangue, contavam as cabeças; toda a gente fremia de indignação e piedade… Eu não; eu abençoava interiormente essa tragédia, que me tirara uma pedrinha do sapato. E depois a Dalmácia era tão longe!"

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