segunda-feira, agosto 15, 2011

Ritual Da Morte / Off With His Head

Dame Ngaio Marsh pertence à fina flor da novela  policial de língua inglesa que floresceu entre as duas guerras. Nasceu neozelandesa e teve sempre uma paixão pelo teatro, donde o excelente desenho dos seus personagens e suas relações e o entrecruzar dialogado nas suas novelas. Costuma apontar-se-lhe como defeito uma menor capacidade de desenhar o mistério, o estranho, o improvável, o arrepio, como o faz Agatha Christie. No entanto ninguém lhe nega uma óptima qualidade de escrita, como nesta obra de 1957, justamente famosa por retratar uma certa ruralidade profunda inglesa em início de transformação onde decorre um auto de origem medieval, uma dança masculina onde ocorre uma morte ritualizada que afinal.. acontece na realidade!
As velhas colecções de livrinhos de mistério tiveram o seu tempo e ainda têm os seus indefectíveis. Nunca foi o meu caso, mas de vez em quando sabe bem. Assim como Ngaio Marsh. O livro é de mistério e portanto um mistério é colocado e a sua solução é o objectivo, e para ela iremos caminhar. A prosa é cristalina e bem assente, o desenvolver das caricaturas adequado e ágil. Estamos ali, vemos a acção, as vinhetas, os quadros. No fim, a chave do mistério acaba por importar pouco, numa espécie de anticlímax. Bom mesmo foi o transporte, o como o escritor nos pôs ali, num castelo semiarruinado, numa aldeia das traseiras de Inglaterra, no meio de um ritual arcaico, reminiscência de tempos muito antigos. Para variar, neste livros pára-se apenas no fim. Porém, a satisfação não advém do que se descobriu mas apenas porque se leu!



"No abandonado celeiro por detrás da taberna o violino do Dr. Otterly soltou uma toada tão antiga como a própria Inglaterra. Decepcionantemente simples, pulava e vibrava, insistente no seu reiterado convite a quem quer que o ouvisse para que sentisse em certa medida o impulso de saltar.
Cinco homens saltavam: habilmente, com concentração e variedade. Para uma dança traziam campainhas suspensas nas pernas e, enquanto evoluíam e sapateavam as campainhas saltavam literalmente com um tilintar ensurdecedor e sem cadência. Para outra encontravam-se ligados pelo ferro, como convém aos filhos de um ferreiro: por um anel formado com cinco espadas. Saltavam e pulavam sobre as espadas. Teciam e desfaziam uma figura concêntrica. As botas sapateavam ao ritmo do violino erguendo colunas de poeira para o tecto. As faces dos homens estavam pálidas do esforço de concentração: a de Dan, a de Andy, a de Nat, a de Chris e a de Ernie. No perímetro da figura e movendo-se em torno dela, dançando, evoluía o velho Guiser, William Andersen. Na sua cabeça via-se um barrete de pele de coelho. Empunhava o clássico bordão com a bexiga. Não dançava com o vigor dos filhos mas com dedicação. Compunha certas figuras curiosas mas não teatrais que pareciam ocultar um significado qualquer. Ralhava às vezes com os filhos e uma vez por outra mandava-os parar para ele poder parar também."


"O sol de Inverno sorria palidamente sobre South e East Mardian na sexta-feira seguinte à Quara-Feira das Espadas. Reflectia-se nas mesas das salas de jantar do reverendo Samuel Stayne e de sua tia, Dame Alice Mardian. Cobria o galheteiro e as louças de estanho do pequeno refeitório do Homem Verde e um deslavado raio conseguiu romper caminho até às fileiras de garrafas alinhadas no bar e à bigorna da Forja do Bosque. Era muito pouco, é certo, mas havia naquela tímida exibição de luz um elemento animador. Em Yowford o dr. Otterly contemplava a cena com inexplicável optimismo. Em Yowford também, Simon Begg, rolando a roda remendada do Dr. Otterly, recordava-se de que o dinheiro que ganhara nos cavalos lhe garantia uma forte probabilidade de remediar a sua sorte com uma quota numa moderna estação de serviço na Forja do Bosque mas lembrando-se que dadas as circunstâncias não pareceria bem mostrar excessivo júbilo, tentou conter-se, o que não o impediu de cinco segundos depois desatar a assobiar um doce e exultante assobio.
Trixie cantava e o cozinheiro assobiava mais alto mas com menos suavidade que Simon. Camilla escovava o cabelo curto em frente da janela aberta enquanto ia repetindo exercícios de controlo de dicção. Pensava em como amava Ralph e, tal como Simon, tentou convencer-se de que não era decente sentir-se tão feliz. A lembrança da morte atroz do avô invadiu-a subitamente e sentiu-se acometida de piedade e amor, não apenas por ele mas por toda a gente. Camilla tinha dezoito anos e era um encanto.
Dame Alice despertou de uma ligeira sonolência   e durante um momento sentiu-se desesperadamente velha. Avistou um pintarroxo no parapeito da janela. O seus olhos eram vivos e a cabeça polida pelo sol tinha movimentos rápidos. Lá em baixo os gansos berravam com toda a força. Dulcie devia estar a tomar o pequeno almoço na sala de jantar. A vaga de depressão recuou."

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