segunda-feira, agosto 15, 2011

Os Amores Difíceis

Italo Calvino foi coligindo estes contos durante alguns anos, com início no início dos anos cinquenta. Calvino emergiu - como outros escritores - da nuvem neo-realista e comunista da intelectualidade italiana para nos dar uma versão da vida a um tempo mais melancólica, metafísica e poética. As suas histórias, circunstanciadas e hesitantes, têm a complexidade de um espelho gentilmente partido e que, afinal, não perdeu mas ganhou com o quebrar. Por isso há sempre uma graciosidade e um fundo de não-mal-estar nesta escrita, embora a palavra "amor" nos pareça um manifesto exagero para os processos enzimáticos que por aqui se descrevem. Como excepção a história dos dois trabalhadores que mal se cruzam em casa pois trabalham em turnos opostos. Será essa ausência de tempo partilhado a chave para que o amor aconteça? Ou mais uma acha para a fogueira que Calvino alimenta da vida como engano, acaso, confusão e despiste, em partes iguais?



"Ao largo daquela praia, estava ela nua.
Ninguém o suspeitaria, vendo só a sua cabeça a sair da água, e um pouco os braços e o peito, enquanto nadava com circunspecção, sem nunca erguer o corpo até à superfície. Portanto podia fazer a sua procura de uma ajuda sem se expor demasiado. E para verificar quanto dela é que entreviam olhos estranhos, a senhora Isotta de vez em quando parava e tentava olhar-se, pondo-se a flutuar quase na vertical. E com ânsia via na água os raios de sol piscarem em límpidos reflexos submarinos, e trazerem à luz algas flutuantes e velocíssimos cardumes de peixinhos estriados, e lá no fundo a areia ondulada, e cá em cima o seu corpo: era em vão que ela, enroscando-o de pernas fechadas, tentava escondê-lo ao seu próprio olhar: a pele do nítido ventre branquejava reveladora, entre o moreno do peito e das coxas, e nem o mover de uma onda nem o navegar a pouca profundidade de alga semissubmersas confundiam o escuro e o claro do seu colo.. A senhora recomeçou a nadar naquela sua híbrida maneira, mantendo o corpo o mais baixo que podia; contudo, mesmo sem parar, voltava-se para espreitar pelo canto do olho para trás das costas: e a cada braçada toda a branca amplidão da sua pessoa lá aparecia à luz do dia nos contornos mais reconhecíveis e secretos. E ela a atormentar-se, a mudar de modo e de sentido o seu nadar, e virava-se dentro de água, observava-se em todas as inclinações e a toda a sua luz, contorcia-se sobre si mesma; e atrás dela vinha sempre este ofensivo corpo nu. Era uma fuga do seu corpo que ela tentava, como de outra pessoa que ela, a senhora Isotta, não conseguia salvar num transe difícil, e já não lhe restava senão abandonar à sua sorte. E no entanto este corpo tão rico e impossível de esconder tinha sido uma sua glória, um seu motivo de comprazimento; só uma contraditória corrente de circunstâncias na aparência sensatas podia agora fazer dele um motivo de vergonha.  Ou então não, talvez a sua vida consistisse sempre e apenas na da senhora vestida que ela até tinha sido em cada um dos seus dias, e a nudez lhe pertencesse tão pouco e fosse um inabitual estado da natureza que se revelava de tempos a tempos despertando o espanto nos seres humanos e nela em primeiro lugar."

"Àquela hora, a casa estava sempre pouco aquecida, mas Elide despira-se toda, um tanto arrepiada, e lavava-se na pequena casa de banho. Depois vinha ele, com mais calma, despia-se e lavava-se também, lentamente, tirava de cima a poeira e os óleos da oficina. Assim, estando ambos em volta do mesmo lavabo, meio nus, um pouco inteiriçados, de vez em quando dando empurrões um ao outro ou tirando o sabonete e a pasta dentrífica das mãos um do outro, e continuando a dizer as coisas que tinham para se dizer, chegava a altura das confianças e, às vezes, se calhar ajudando-se um ao outro a ensaboar as costas, insinuava-se uma carícia e davam consigo abraçados.
Mas de repente Elide: - Santo Deus! Já é tão tarde! – e corria a enfiar o cinto de ligas, a saia, tudo à pressa, de pé, e já passava a escova para baixo e para cima pelos cabelos, e esticava o rosto para o espelho da cómoda, com os ganchos presos entre os lábios. Arturo vinha atrás dela, acendera um cigarro, ficava ali de pé a olhá-la, fumando, e de todas as vezes parecia um tanto atrapalhado, por ter de estar para ali sem poder fazer nada. Elide estava pronta, enfiava o casaco comprido, no corredor, davam um beijo, abria a porta e já se ouvia descer as escadas a correr.
Arturo ficava sozinho. Acompanhava o ruído dos saltos de Elide pelos degraus, e quando já não a ouvia continuava a segui-la com o pensamento, aquele trotar veloz pelo pátio, pelo portão, pelo passeio, até à paragem do eléctrico. O eléctrico, em contrapartida, ouvia-o muito bem : chiar, parar, e o bater do estrado por cada pessoa que entrava. “Pronto, apanhou-o”, pensava, e via a mulher apertada no meio da multidão de operários e operárias no “onze”, que a levava até à fábrica como todos os dias. Apagava a beata, fechava as portadas de madeira da janela, para tirar a luz do quaro, e metia-se na cama.
A cama estava como a tinha deixado Elide ao levantar-se, mas do seu lado, de Arturo, estava quase intacta, como se tivesse sido feita nessa altura. Ele deitava-se do seu lado, muito bem comportado, mas depois estendia uma perna para lá, para onde tinha ficado o calor da sua mulher, depois estendia a outra perna, e assim a pouco e pouco deslocava-se todo para o lado de Elide, naquele nicho de tepidez que conservava ainda a forma do corpo dela, e enterrava o rosto na sua almofada, no seu perfume, e adormecia.

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