Sim, eu sei. Sou teimoso. E tenho manias, resultado talvez de um que outro acidente de percurso com traumatismo craneo-encefálico. Uma mania? Ler na língua original para obviar aos frequentes defeitos de tradução.
The Songlines é o último texto longo de Bruce Chatwin, talvez o viajante escritor mais interessante do século XX. Morreu novo, era bonito, teve uma vida louca. Já se contou: trabalhava para a Sotheby's em Londres, ganhava bem, mandou um telegrama: "gone south (to Patagonia)", desapareceu. Daqui resultou um livro que fez história. Chatwin, o paradigma do espírito irrequieto, tem um enorme interesse sobre o nomadismo, também já se escreveu. Este livro é sobre os Aborígenes australianos e um tipo especial de nomadismo. Que está relacionado com a sua concepção de criação do mundo, dos animais, e de cada indivíduo. A cada coisa, animal, pessoa, corresponde uma canção. Cantá-la, enunciá-la, enquanto se caminha, enquanto se faz a viagem, é um processo místico de afirmação e encontro com os deuses, os criadores do mundo, que foram também os criadores destas canções que, ao serem cantadas, transformaram em realidade o que antes era apenas Sonho. Esta é a história aborígene da criação do mundo: um festival de canções. Enfim, se calhar não é bem nada disto, se calhar é ainda melhor, porque em inglês a escrita rica, pormenorizada e às vezes quase barroca de Chatwin é-me de difícil apreensão. Mas o livro é - quando o entendo - fantástico. Consta que o enredo, a história que se conta, é efectivamente ficção, e que Chatwin não esteve assim tanto tempo com os Aborígenes. Pois, e no entanto...
Consegui "ler": o colossal confronto de culturas tão diferentes que é a dos colonizadores contra a aborígene, com lógicas absolutamente opostas. E que um manto diáfano de respeito e precedência que adquiriu a cultura aborígene permite a estes um jogo de sobrevivência que pode ganhar contornos ora trágicos ora de uma enorme comicidade.
Com o avançar do livro Chatwin vai interpondo cada vez mais apontamentos, como se extratextos, sobre coisas que viu, pensou, achou, se deixou surpreender/encantar nas suas viagens pelo mundo, ainda e sempre à procura do nómada perfeito/perdido. Há algo de urgente, de impaciente, como se Chatwin já não tivesse tempo para transformar os apontamentos e citações em circunvoluções de um romance que aqui fica soterrado, esquecido, para só reemergir escassamente para acabar. Este livro tem aqui o seu desequilíbrio.
E tudo termina em pura poesia, pois há uma canção que se canta e se deixa ouvir. Com se o ruído primeiro, como se o primeiro som das primeiras estrelas, ou dos primeiros homens, ou ainda de quem estava aqui antes deles, tanto faz.
"As I wrote in my notebooks, the mystics believe the ideal man shall walk himself to a “right death”. He who has arrived “goes back”.
In Aboriginal Australia, there are specific rules for “going back” or, rather, for singing your way to where you belong: to your “conception site”, to the place where your tjuringa is stored. Only then can you become – or re-become – the Ancestor. The concept is quite similar to Heraclitus’s mysterious dictum, “Mortals and immortals, alive in their death, dead in each other’s life.”"
"Limpy hobbled ahead. We followed on tiptoe. The sky was incandescent, and sharp shadows fell across the path. A trickle of water dribbled down the cliff.
“Tjuringa placed up there!” said Limpy, softly, pointing to a dark cleft high above our heads.
In a clearing there were three “hospital” bedsteads, with mesh springs and no mattresses, and on them lay three dying men. They were almost skeletons. Their beards and hair had gone. One was strong enough to lift an arm, another to say something. When they heard who Limpy was, all three smiled, spontaneously, the same toothless grin.
Arkady folded his arms and watched.
“Aren’t they wonderful?” Marian whispered,putting her hand in mine and giving it a squeeze.
Yes. They were all right. They knew where they were going, smiling at death in the shade of a ghost-gum."
"Nuristan, Afghanistan, 1970
The villages of Nuristan are set at so vertiginous an angle to the mountainsides that ladders of deodar wood must serve the function of streets. The people have fair hair and blue eyes, and carry battle-axes made of brass. They wear pancake hats, cross-gartering on their legs, and a dollop of kohl on each eyelid. Alexander mistook them for a tribe of long-lost Greeks, the Germans for a tribe of Aryans.
Our porters were a cringing lot, forever complaining that their poor feet could carry them no farther and casting envious eyes on our boots.
At four o’clock they wanted us to but we insisted camp beside some sunless and broken houses, on moving up the valley. An hour later, we came to a village surrounded by walnut trees. The roof-tops were orange, from apricots drying in the sun, and girls in rosse-madder dresseswere playing in a field of flowers.
The village headman welcomed us with a frank and open smile. We were then joined by a bearded young satyr, his hair wreathed in vine leaves and meadow-sweet, who offered us from his leather flask a thread of sharp white wine.
“Here”, I said to the leading porter, “we will stop”.
“We will not stop”, he said.
He had learnt his English in the Peshawar bazaar.
“We will stop”, I said.
“These people are wolves”, he said.
“Wolves?”
“They are wolves.”
“And the people of that village?” I asked, pointing to a second dejected-looking village about a mile upstream.
“They are people”, he said.
“And the village beyond that? Wolves, I suppose?”
“Wolves”, he nodded.
“ What nonsense you do talk!”
“Not nonsense, sahib” , he said. “Some people are people and some other people are wolves.”"
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